sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O fogo do inferno




Rebento bastardo dum sítio isolado no interior do Brasil, Salustiano nasceu e cresceu na miséria. Cultivou terras alheias, ordenhou gado alheio, passou mil dificuldades, mas sobreviveu. Moço ainda ganhou estrada. Retirou-se para a cidade grande. Aprendeu ofício de servente de pedreiro.
Um dia, pelejando em propriedade de gente graúda, retribuído num olhar desavisado, apaixonou-se. Chamava-se Emereciana a jovem serviçal da casa. Saudável, recatada e, no modo do nordestino dizer, um pitéu! Mas, problema. A cabrinha possuía religião e era tinhosa que só a peste! Única exigência feita ao pretenso futuro marido, em forma de quadrinha:

Só dou o meu coração
E o resto dos troços meus
Se o moço for bom cristão
E se for temente a Deus.

E mais não disse. Salustiano relutou no princípio, depois cedeu. Paixão é isto, que remédio? Trocou o hábito das cachacinhas no boteco pelo culto religioso. Comprou paletó no brechó e, no sebo, uma bíblia pouco usada. Pura artimanha de conquista. O pobre-diabo não conseguia sequer rabiscar o próprio nome.
Nos dias de culto espiritual, chegava cedo. Esperava Emereciana na porta do templo; sorriso encardido de nicotina e o livro sagrado metido no desvão do sovaco. No início, mal ouvia o que o pregador falava, pois não despregava os olhos cobiçosos do decote, ainda que bem comportado, e do pequeno trecho de canela que o longo saiote da namorada insinuava.
O tempo passou. O casamento se configurou e o corpo da mulher se desfigurou pelas seguidas gravidezes. Salustiano passou a ouvir mais atentamente aquele que se autodenominava Pescador de Homens. E ouviu com tanta atenção e com tanta desconfiança, que se matriculou num curso noturno de alfabetização para adultos. Precisava certificar-se de que as coisas ditas pelo pregador estavam mesmo escritas no Livro Antigo.
Mal aprendeu a ler, convenceu-se de que estava tudo errado. O sujeito andava muito mal intencionado, criando invencionices para cobrar, de modo vexatório e persistente, a contribuição do dízimo. Salustiano, agora, mais pobre que nunca, por ter que sustentar um grande lote de filhos famintos, sem condições de manter em dia o pagamento do templo, morria de vergonha quando as cobranças vinham inseridas no sermão. E elas vinham sempre!
─ A Casa de Deus, para manter-se de pé, depende do comprometimento dos seus seguidores -fuzilava o pregador.
E a orelha do pobre servente queimava. O coitado suava frio. Desconcertado, movia seus robustos dedões de sertanejo dentro do sapato adquirido no brechó, sempre um ou dois números abaixo do ideal.
─ Ah, infeliz! Este recado só pode ter sido pra mim - e se contorcia de raiva.
Escarafunchando a bíblia, conheceu e se impressionou com a história de Abraão. Sujeito que valeu em muito o chão que pisou e o jabá que digeriu. Amigo quase íntimo de Deus, gente da melhor qualidade; pensava Salustiano, no seu limitado alcance intelectual.
─ Isso é que é homem! - dizia de si para si, enquanto lutava com a própria nulidade, tentando decifrar as emaranhadas dissertações do Velho Testamento.
Um dia em que sua paciência foi levada à fervura, durante o sermão que uma vez mais inquiria a colheita do dízimo, Salustiano ergueu-se num salto e, do meio da turba atônita, desafiou o pregador. Chamou-o de mercenário excomungado e o mandou para o quinto do inferno.
Os obreiros do templo tentaram imobilizar o sertanejo para levá-lo ao altar e arrancar-lhe, a golpes de chibata, o demônio que o estava possuindo. Mas ele não era homem de se deixar dominar. Saltitou feito cabrito, fugiu dos seguranças e, antes de ganhar a rua, deu banana para o religioso.
Nunca mais voltou a pisar em igreja e ainda proibiu a família de o fazer também. Com o desajuste, veio a crise, ou o que passaram a considerar como tal. Uns pequenos adoeceram, Salustiano perdeu o emprego de quinze anos, Emereciana sofreu dois abortos seguidos e quase partiu desta para melhor. A vida na cidade ficou insustentável. A despesa era grande: aluguel, conta de energia elétrica, conta d’água, gás, quitanda, padaria, farmácia...
O sertanejo lembrou-se da roça, onde água e fogo são de graça; comida é só plantar que se enche o bucho e até remédio se cultiva na horta. Decidiu recuar. Voltou para o interior. Arrendou um terreno e trabalhou com afinco. A plantação cresceu, a família se empanturrou, a vida seguiu curso normal. Mas uma coisa estava em desacordo: cadê religião?
Bem certo que Salustiano continuava lendo o velho livro. Quanto mais lia, mais aprendia, a seu modo, é claro. E assim o olho-por-olho, tão propagado naqueles antigos registros tornou-se a sua diretriz.
Um dia em que a mulher se queixou de saudade de religião, Salustiano discursou assim:
─ Ninguém mais nesta casa vai sentir falta de igreja, porque esta noite Deus falou comigo e me mandou erguer um altar pra Ele dentro de nossa própria casa. Ela se chamará Templo de Abraão de Deus e, a partir de hoje, meu nome não mais será Salustiano, mas sim, Abraão de Deus, porque assim Ele determinou.
E, deste modo, surgiu num cantinho longínquo do sertão, o Templo Evangélico Abraão de Deus. O povinho das redondezas, faminto também de fé, passou a frequentar o recanto da família de Salustiano, transformado agora em casa religiosa.
Os fiéis ouviam os sermões do pseudo Abraão e tentavam acatar todas as suas determinações. Choravam, lamentavam-se, pediam perdão a Deus pelos pecados cometidos e a cometer, e morriam de medo do caldeirão de azeite fervente que está sempre a postos, esperando os pecadores, nas profundezas do inferno.
Abraão de Deus não poupava ninguém. Velhos, jovens, crianças; todos eram constantemente ameaçados com as mais inimagináveis torturas a serem aplicadas pelo Diabo em pessoa, se não obedecessem cegamente às determinações bíblicas, tão deturpadas pelo limitado raciocínio do emergente pregador, que passou a se intitular Pescador de Homens.
Quando percebeu que seus seguidores o obedeciam cegamente, morrendo de medo dos castigos celestiais (ou infernais), Abraão de Deus concluiu que não havia nada demais em explorar um pouquinho a boa fé alheia. Instituiu o dízimo no templo e dele se tornou cobrador renitente, inserindo sempre nos sermões a fatídica cobrança da taxa.
─ Quem não tem dinheiro, paga com víveres e alimentos mesmo. Afinal, ninguém é tão pobre, que não tenha algo pra dar - repetia enfaticamente. ─ E ninguém pode ser tão avarento a ponto de não emprestar aos que nada têm - concluía, fuzilando um olhar desconcertante aos mais abastados.
Parte do povinho aderiu. Parte fez ouvidos moucos e para o Pescador de Homens, ali estava a concretização da tão propagada separação do joio e do trigo.
Os que aderiam à contribuição tornavam-se ovelhas prediletas do seu rebanho. Os que se negavam a colaborar eram classificados como ovelhas desgarradas e, deste modo, deixavam de fazer jus aos maravilhosos júbilos celestiais, cujo caminho passava pelo pedágio do astuto homenzinho.
Salustiano, ou melhor, Abraão de Deus prosperou a olhos vistos. Passou a andar de terno engomadinho, comprou bicicleta nova, adquiriu propriedades, abriu conta poupança na agência bancária e abandonou a labuta braçal. Enxada, foice e arado viraram desafetos. As mãos, antes tão calejadas, tornaram-se sensíveis e improdutivas.
A gentinha titubeou. Alertadas pelos mais atentos, as ovelhas prediletas também abandonaram o rebanho. Abraão sentiu no bolso a debandada e desesperou-se. Passou a cercar o povo na rua, nas roças, e até em seus lares. Bíblia na mão e o dedo em riste, advertindo-os sobre a terrível ameaça representada pelo fogo do inferno.
Que voltassem ao Templo. Que não se entregassem às artimanhas de Satã. Que não deixassem sua fé esmorecer-se. Que isso... que aquilo... Tudo em vão. Nos dias de culto, somente Emereciana e os filhos presentes. Salustiano, desesperado.
Um dia, no ápice do seu desequilíbrio, decretou a circuncisão dos filhos varões. Para mostrar-lhes que não doía nadinha, fez sua própria cirurgia na frente dos meninos e provocou um pânico generalizado, pois acabou desmaiando de dor e de medo do sangramento provocado pela bárbara operação, realizada com uma lâmina de barbear.
Vendo que o marido andava aluado, temendo pela segurança dos filhos, Emereciana catou a prole e, alegando necessidade de visitar uns parentes, fugiu para bem longe dali. Sem se dar conta do abandono sofrido, Abraão de Deus continuou preocupado apenas em ruminar a decepção causada pela debandada das ovelhas prediletas do seu rebanho. Aquelas a quem tentara salvar da perdição eterna, em troca, tão somente, de uns míseros agradinhos.
─ O que fazer, Deus meu? Como convencer essa gentinha, dos malefícios a que está se sujeitando? Como livrá-la do castigo eterno? - perguntava-se.
Aí surgiu a grande ideia: Uma festa! Uma festa com muita comida e bebida de graça. O povo haveria de ir. Ah, se haveria!
E assim, numa tenebrosa noite, aproveitando-se da ausência da família em casa, Abraão de Deus cuidou de tudo. O Templo abandonado voltou a se encher. Quase todo o vilarejo estava ali, comendo, bebendo e se refestelando com o banquete oferecido. A tarrafa do Pescador de Homens estava abarrotada.
 O ex-servente de pedreiro, tendo saído discretamente, circundou o Templo. Em torno dele despejou uma imensa quantidade de gasolina. Horas antes, uma muralha de galhos secos havia sido estrategicamente erguida ao redor das paredes.
Quando as primeiras pessoas começaram a se dar conta do forte cheiro do combustível e do calor repentino, era muito tarde. O fogo já havia sido ateado e as chamas altaneiras, seguidas de um estrondo ensurdecedor, circundavam inteiramente o local, não permitindo a qualquer vivente livrar-se do terrível destino.
A uma boa distância da fogueira, Abrão de Deus sentou-se num toco de lenha, exausto, porém satisfeito. Acendeu o cachimbo e ficou admirando o fogo que crepitava e as labaredas que bruxuleavam ao vento, despendendo um fortíssimo cheiro de carne queimada. Olhou para o céu, com seus olhos quase misericordiosos e disse, cheio de razão:
─ O Senhor é testemunha de que eu avisei. Mas este povo é teimoso, meu Pai! Ninguém acreditou no fogo do inferno!
Estirou os beiços em direção à fornalha e sussurrou:
─ Agora, olha aí. Vê só no que deu aquela teimosia toda!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Desilusão




Francisca não sabia bem a razão, mas a verdade era que, desde a infância, tivera pouquíssimos relacionamentos com os homens. O pai fora uma ausência constante, uma ficção incompreendida que a mãe insistia em manter no anonimato. A criadagem era composta somente por mulheres, de forma que ela cresceu praticamente sem conhecer homem algum.
A percepção de tal fato só veio a ocorrer na mocidade. Francisca começou a se dar conta da ausência de companhia masculina em sua vida, quando, por força do destino, conheceu Ramiro: um jovem mascate de olhos vivos e cabeleira ruiva, que ousou arrastar-se pelas paragens do fim de mundo desértico, onde ela vivia.
Estava em andanças mal-sucedidas, levando enorme mala no lombo de uma mula trôpega, tentando comercializar produtos de higiene pessoal e quinquilharias de uso doméstico.
Como houvesse chegado quase ao anoitecer de um dia extremamente chuvoso e ardesse em febre, as mulheres da casa o acolheram para pouso e repouso, do contrário morreria ao relento. Hospedagem perto não havia.
Após o jantar, Ramiro e Francisca conversaram timidamente, sob o luzeiro frouxo de um velho lampião. A moça, curiosa, bombardeou o mascate com todas as perguntas que inquietavam sua mente. Ouviu e analisou, com grande interesse, todas as respostas. Achou graça da natureza vaga dos homens. Da fraqueza de seus atos, da dubiedade de seu raciocínio e da incapacidade instintiva; coisa tão presente nelas, as mulheres.
Francisca condoeu-se sinceramente de Ramiro e de todos os homens do mundo. Por pura piedade, apaixonou-se pelo rapaz. Sentiu uma grande necessidade de protegê-lo, não somente do resfriado, mas de todas as mazelas que a vida impõe aos seres de natureza fraca.
Dias depois, sentindo-se enamorados, despediram-se calorosamente, com Ramiro prometendo voltar em breve para pedi-la em casamento.
Durante muito tempo, Francisca aguardou ansiosa pelo retorno do suposto noivo, mas o que vinham eram cartas e mais cartas justificando a ausência. No entanto, também elas foram se escasseando, até que deixaram, definitivamente, de chegar.
Francisca inquietou-se no início. Depois se conformou resignada: aprendeu que os homens eram, também, mentirosos.
Muitos anos já se passaram e Francisca vive ainda naquela casa antiga, distante de tudo e de todos, abandonada à solidão do lugar. Tem ela hoje muitas rugas no rosto, a cabeleira branca e o turvo olhar de quem já não vislumbra projeções futuras.
Às vezes, para matar o tempo e lembrar-se de como são os homens, reabre um velho baú de guardados e relê as cartas amarelecidas e frias que ali estão para provar o quanto eles são volúveis.
Quando acontece, de raro em raro, passar por lá um andarilho, Francisca sempre pergunta se por acaso ele não conhece um tal Ramiro, de olhos vivos, cabeleira ruiva, natureza dissimulada...
Mas, não. Ninguém o conhece!

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Cativeiro da Alma




Foi só de querer matar o tempo – troço imponderável – que Zé Rufino se enleou nos caprichos do destino. Nada de especial ali, no povoado. Apenas a madorna lerda dos dias chochos que seguiam enfileirados.
Fora isto, o de sempre: o ribeiro, a aragem, o silêncio, o serviço, o sono... O sonho não! Sonho, no modo do Zé Rufino ver, era desatino. E desatino gera ambições, arroubos desenfreados, empilhamentos de bens que invariavelmente se tornam males. Inutilidade purinha!
Daquele modo estava bem bom. O tempo lerdo a compassar a vida que desfilava defronte à vidraça dos olhos, sempre abarrotados de mesmice.
E a alma – ah, a alma! – inteirinha imersa na invencível melancolia de quem se apega com exagero à solidão, mas, livre! Inegavelmente livre!
Zé Rufino era – por que não dizer? – feliz! Destituído de valores supérfluos, desnudo mesmo de projeções arrojadas. Bastava um bem-te-vi que o visse... Um pio de nhambu que ouvisse... Um cicio de rio... Ou nem isso. Qualquer insignificância preenchia-lhe, desde que não amolasse os sentidos.
Por isso, ele acobertava ou não possuía mesmo nenhuma cicatriz interior. Vadiava, sem eira nem beira, pelos caminhos do vento. Garimpava estrelas na solidão das noites. Degustava brisas e sóis na mansuetude dos dias. E só!
Mas quando, em pleno ápice de sua bucólica existência, ocorreu o desregramento, Zé Rufino deixou no rastro os desarranjos, os infortúnios e todos os diabos que a novidade trouxe no lombo. Perebas mesmo, que lhe escalavraram a alma e provocaram sangria desatada. Gamação braba!
– Ai, pobrezinho do  Zé! – pareciam ruminar a aragem, o regato e as estrelas.
Ela tinha que chegar e desordenar a ordem das coisas? Tinha – estrupício de vida! – com malquerente rudeza, que enovelar o pobre do Zé? Endoidecer o Zé? Azucrinar o Zé, que nunca nem tinha cogitado de se enlear em concupiscências?
Mas chegou assim, bem na brejeirice do vento matutino. Sorriu com um trejeito insinuante de rubros lábios. Bailou a ruiva cabeleira no mormaço da manhã e iluminou, com um par de olhos faiscantes, tudo o que de escuridão habitava nele. Cativou-lhe a alma de modo irreversível. Irresponsável até. Que maravilhosa miséria!
Então, desprovido de sossego e silêncio, Zé Rufino caiu em desgraça. Não que fosse tão desgraça assim. No princípio é sempre um mel doce que ceva... Um feitiço que atiça... Parece até ser coisa boa.
Da despretensão de empilhar valores o pobre já foi se perdendo. Por mais desapegada que seja, fêmea é sempre fêmea e só gosta de fincar raiz  em terreno sólido. Daí, Zé abriu covas novas, alicerçou base no solo, ergueu paredes contra o vento, fechou telhado sob as estrelas e aprisionou-se.
Cadê o voto de desprendimento? A aragem na cara? O sol nos olhos? O garimpo a céu aberto? Paciência!
Não levou tempo que se preze para gear na fervura do causo. Previsivelmente! Ninguém respira direito com um nó apertando o pescoço e o coração sempre aos pinotes, feito potro indomado.
Daí, a cabeleira ruiva que se sacudia ao léu e os olhos que tanta luz projetavam na escuridade dele, perderam o viço. E tudo o que havia sido edificado e que aparentava grande valia, tornou-se um inútil amontoado de tijolos caiados, com um espaçosinho tão espremido por dentro e um ar tão saturado de angústias, que só fazia sufocar. Diacho de vida!
Mas, compromisso conubial, uma vez firmado, é troço indissolúvel para quem tem justeza de caráter. E o tinha de sobra o pobre Zé Rufino.
– Alto é o custo de quem desvirtua essa virtude – dizia ele.
Então, o amante só fez amuar. Largou o timão da vida... Singrou à deriva... Não! À deriva, não! Mas sob o cabresto dela, que vivia com o indicador em riste. Fazer o quê?
Zé Rufino mostrou-se bom de tranco. Seguiu assim, macambúzio, porém fiel.
Nunca é demais, no entanto, que se campeiem enredos de feliz viver. Cada qual é contente ou descontente a seu modo. E, diga-se por dizer, nem todo mundo se contenta com o descontentamento que tem.
Ah, demasiado é qualquer tempo que se viva sem contar estrelas! Sem aconchego de sol... Sem chamego de aragem... E tudo isto, em função de quem, muitas vezes, nem faz por merecer consideração.
E veio – previsível fado das relações conturbadas – o dia aziago em que o fel transbordou.
Zé Rufino viu com seus olhos infelizes. Ninguém lhe contou, não. A ruiva cabeleira serpenteante e os olhos que um dia esparramaram luz na obscuridade dele, serpenteavam e alumiavam agora noutra direção. Indubitavelmente!
Se fosse só picuinha de gente mexeriqueira, se fosse cisma auferida em ciumeiras desenfreadas... Mas, não! Ali, ó! Claro e certo, como o dia é dia e a noite é noite! Prevaricação da grossa! Indesculpável!
Quanta amolação para o pobre do Zé Rufino! Não bastava a alma desprovida de paz? O corpo ausente de sol? Os olhos cerceados de luz? E aquele maldito ar saturado, no espaço agredido por tijolos e telhas?...
– Ai, ai, ai, ai, ai...! – assoprava-se, tentando abrandar a queimura. Inutilmente!
Quando se pegou sem saída, agarrou-se à desgraça e flertou com ela mesma. Os olhos luminosos, o pobre não mais vira. E da cabeleira ruiva só pôde ver o coque preso à nuca, saindo porta afora.
– Que o capeta te carregue! – quis gritar.
Mas permaneceu mudo, porque sentia que um cerco de arame farpado encurralava-lhe as vísceras da alma. Além disso, aquele troço morno que lhe saltava dos olhos, que contornava as abas do nariz e invadia os cantos da boca tinha um gosto salobro, obrigando-o a mantê-la fechada.
E ela se foi. Não com o capeta, como o Zé quisera propor. Mas, se foi.
E o pobre coitado nunca mais conseguiu se livrar do cativeiro erguido pelas próprias mãos. Nunca mais degustou sóis e brisas na mansuetude dos dias... Nunca mais voltou a garimpar estrelas na solidão das noites...
Mas, finalmente adquiriu cicatrizes interiores. E foi justamente a partir daí que reconsiderou suas considerações e desandou a sonhar!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

            


           
            – Ao diabo com tudo isto! – gritou Nepomuceno, dando um soco no balcão da padaria, enquanto engolia o último trago de café.
            Atirou umas moedas para o rapazinho do caixa e saiu em disparada, como se tivesse muita urgência em desenrolar alguma pendenga. Eram 7 horas e 12 minutos de uma segunda-feira garoenta e fria na cidade de São Paulo.
            Nepomuceno cobriu a cabeça com o gorro da blusa de moletom, enfiou as mãos nos bolsos para abrandar a friagem e desceu quase correndo a Avenida Brigadeiro Luís Antônio; dobrou para a direita na esquina da Rua Maria Paula e subiu, num só fôlego, o Viaduto da Sé, pois pretendia embarcar no metrô. Já estava descendo os degraus de acesso à estação, quando se deu conta de que, naquele horário, não era tão ruim o tráfego na Radial Leste, no sentido bairro. Então, decidiu pegar um ônibus no Terminal Parque Dom Pedro II. De ônibus, não precisaria fazer nenhuma baldeação.
            Deu meia-volta tão abruptamente, que quase se chocou com um velho magro, de olhos embotados, que recepcionava os desembarcantes, exibindo no peito uma placa com a frase “compra-se ouro” e galgou os degraus com tanta urgência, que não deixava a menor dúvida de que corria contra o tempo.
Oito minutos depois, seguia para casa. Atrás ficava a região central, com sua frenética aglomeração de veículos e transeuntes, sua infernal poluição sonora, seus ruídos estridentes de buzinas, seus roncos de motores impacientes e o pregão lamurioso dos vendedores de bugigangas.
Era a capital paulistana retomando o ritmo acelerado de início de semana.
            O ônibus seguia em direção ao bairro numa velocidade normal, mas a Nepomuceno parecia lento. Lento, se comparado à emergência do seu coração aflito. Por um instante, pensou no ambiente do trabalho e intranquilizou-se.
            Num dia normal, àquela hora, estaria no edifício em construção, aguardando o momento de iniciar suas atividades de marceneiro. Mas, naquela manhã, as coisas fugiram ao controle. Bastaram três minutos, desde que entrara na padaria, para que toda aquela correria se iniciasse e um turbilhão de pensamentos febris o levasse a reconsiderar a rotina e a tomar aquela medida, de certo modo, irresponsável.
Estava olhando a TV, enquanto tomava o seu café. De repente, entrou no ar uma reportagem de grande impacto e lhe prendeu a atenção. Aliás, não só a dele, mas de toda a gente que se encontrava na padaria. Todos, sem exceção, ficaram olhando para a tela, petrificados, pois a imagem, registrada por um cidadão anônimo, por meio de um desses aparelhos de telefone celular, era consternadora.
           Tratava-se de um homem que, carregando no colo o corpo da esposa, pranteava desesperadamente. O fato havia ocorrido na noite do domingo, no estacionamento de um shopping. O casal havia ido ao cinema e, na saída, se deparou com um intenso tiroteio entre policiais e assaltantes. Um projétil havia atingido a cabeça da mulher. Ela estava morta, mas o marido não se conformava e queria, por todos os meios, levá-la a um pronto-socorro. Chorava e gritava, implorando para que alguém fizesse alguma coisa. Que não a deixassem morrer; que ele não poderia viver sem ela; que ela estava esperando o filho tão desejado; que ela era o único amor da vida dele; que estavam casados há apenas seis meses; que tinham mil planos...
            Gritava essas coisas e a abraçava, manchando de cor púrpura seu rosto sombrio e sua alva camisa, beijando a testa lívida da esposa morta. Por fim, extenuado, sentou-se num canteiro de azaleias, com o cadáver no colo e ficou olhando para o alto, dizendo coisas desconexas, monologando com Deus, enquanto uma pequena multidão começava a se aglomerar em torno da dramática cena.
           Mediante à triste reportagem, houve um silêncio coletivo na padaria. Quando alguém abriu a boca, foi apenas para pronunciar a frase que ficou martelando na cabeça do Nepomuceno até o momento em que ele tomou a decisão de fazer o que fez.
            – Às vezes, a pessoa precisa morrer para saber que é amada!
           E foi a consternação provocada pela forte cena exposta no telejornal e o apelo emocional desta frase quase sussurrada, que desencadearam nele aquela ebulição interior. Numa fração de segundos, Nepomuceno reviveu toda a trajetória do seu desastroso fim de semana. Pensou em Natália e na infeliz atitude tomada no domingo de manhã. Por qual motivo? Lembrava-se lá por qual motivo? Com certeza, uma quirela; uma frase mal interpretada; um incidente pueril... Enfim, nada que justificasse um domingo inteirinho de contrariedades.
         E a culpa, de quem fora? Que importava? Havia passado o dia todo no boteco, bebendo com os colegas, discutindo futebol, jogando bilhar. Logo ele, que nem gostava de beber, nem de jogar bilhar e menos ainda de discutir futebol. Fez por pirraça! Para deixar a esposa sozinha o domingo inteiro. Comera torresmo com farofa no bar, desprezando o almoço delicioso que ela sempre lhe preparava com o maior carinho. Regressara ao lar à noite. Natália, deitada, fingira dormir quando ele entrou no quarto para se trocar.
        Nepomuceno passara a noite no sofá da sala, com a televisão ligada. De madrugada, acordara ouvindo uns soluços. A esposa estava chorando baixinho, um pranto triste e desconsolado. Aí foi ele que fingiu estar dormindo.
            Saíra de casa às 5 horas e 30 minutos em ponto, sem dirigir-lhe a palavra. Mas sabia que a esposa havia se levantado ao ouvi-lo sair. Sabia que ela havia se posicionado atrás da janela da sala e que o observara atravessar a rua. Sabia que ela pedira a Deus que o protegesse e o trouxesse para casa, à noite. Era o que ela sempre fazia, mesmo que estivessem brigados.
A cena da mulher morta nos braços do marido em desespero fê-lo sentir-se um palerma. Chegou a invejar o rapaz da reportagem. Não por protagonizar uma cena tão trágica, é lógico, mas pela flagrante e sincera demonstração de amor que fizera diante de uma minúscula câmera filmadora que a projetou universo afora. O oportuno filmador não conseguira enquadrar o rosto da mulher, mas a sua silhueta miúda, a sua negra e encaracolada cabeleira, o seu jeito frágil e esguio, tudo isso lembrava a estrutura física de Natália e teve um peso enorme na decisão de Nepomuceno.
            – E se fosse a Natália, ali, morta? - perguntou-lhe uma voz interior.
            E a resposta que obteve de si mesmo foi um nó imenso que se desenvolveu em sua garganta e o impossibilitou de continuar pensando. Foi então que, num gesto automático, socou o balcão da padaria e disse aquela frase. Não porque ela lhe fizesse algum sentido, mas porque foi a única coisa que conseguiu balbuciar:
            – Ao diabo com tudo isto!
         Talvez o “tudo isto” significasse a segunda-feira garoenta e fria; o edifício em construção na Bela Vista; a contrariedade da chefia por causa da falta injustificada... Talvez!
         E foi aí que, para espanto de toda a gente que tomava café na padaria, ele saiu em debandada, descendo a Brigadeiro Luiz Antônio, passando pela Sé e estando agora a caminho de casa, no contrafluxo do trânsito caótico da Radial Leste, após ouvir a mágica frase que o impulsionou: “Às vezes, a pessoa precisa morrer para saber que é amada!”.
            Não era bem assim. Ele amava a esposa e ela não precisaria morrer para sabê-lo. É certo que nunca o confessara assim, abertamente, mas em seu íntimo não havia a menor sombra de dúvida. Ele a amava e amava também o filho que há cinco meses encontrava-se enovelado no útero dela. Amava-os e a ideia de confessar tal sentimento à esposa somente depois de morta provocou-lhe um arrepio na espinha.
            Por isso, aquela urgência toda. Nepomuceno temia não chegar em casa a tempo. Parecia apostar corrida com a morte, mesmo sabendo que não deveria haver morte alguma rondando a esposa ou o filhinho. Mas sabia, também, que certamente era esse o pensamento do casal do noticiário, no momento em que saía do cinema.
         De qualquer modo, a pessoa que havia sussurrado tal frase cometera um equívoco, porque ele mesmo, Nepomuceno, estando vivinho da silva, sabia que era amado. Natália não só o dissera muitas vezes, como escrevera em curtos poemas dedicados a ele. Alma sensível e delicada, vivia a fazer versos que ele fingia ler e gostar, mas que não lhe diziam muita coisa. Mas a frase “eu te amo!” Ah!, esta ele lia, e entendia, e gostava de verdade.
            Às 8 horas e 47 minutos, Nepomuceno desembarcou no ponto de ônibus que ficava próximo de sua casa. Passou na floricultura, comprou um buquê com uma dúzia de rosas. Depois foi à confeitaria e adquiriu sonhos com recheio de chocolate – a guloseima preferida de Natália.
E foi assim que invadiu a casa naquela fria e garoenta manhã de segunda-feira. Com a alma repleta de angústia, e encheu de luz, perfume e sabor o quarto em penumbras, onde o amor ou a morte o esperava de braços abertos.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Guiomar



─ Faço setenta anos pelo início da primavera - disse-me Guiomar - e continuo virgem feito uma ostra. Não apenas por ter nascido no mês de setembro, mas também porque nunca dormi com homem algum em toda a minha vida.
Disse isso com um tom de voz tão resoluto, com tanto brilho no olhar, que não deixou transparecer o menor resquício de nostalgia.
Estávamos atrapalhados em meio às dezenas de quadros que ela exporia no Salão de Cultura, onde eu trabalhava. Acabáramos de nos conhecer e aquela mulher intrigante, demonstrando por mim uma simpatia gratuita, contava-me a vida com uma espontaneidade tão sincera, que me deixou constrangido.
─ A vantagem de se ter 70 anos, é que não precisamos ser tão comedidos nesta idade - disse sorrindo. ─ Minhas verdades não são pecaminosas, apenas cometi o desatino de ser fiel a mim mesma, de guiar meus próprios passos, ignorando a intransigência dos que tentaram me deter.
E, assim dizendo, foi descortinando sua história e inserindo em minha mente tantas imagens, que precisei escrever sobre elas para libertar-me, em parte, da profusão de ideias que me sobressaltaram.
Guiomar nasceu num povoado remoto, no litoral paulista. Do pai guardou, sem rancores, a imagem austera, embrutecida pelo cotidiano rude da metalurgia. Da mãe, o semblante dócil e submisso de uma professorinha que fazia versos e tocava pianola nas horas crepusculares. Dos dois irmãos, a indiferença recíproca.
O maior deslumbramento de sua infância foi a cópia de um Monet, dependurado na parede de um consultório dentário. Ficou tão embevecida com a pintura, que perdeu o terror pelo dentista e lamentou profundamente o término do tratamento. Saiu dali decidida a se tornar pintora. Passou a desenhar com giz em todas as paredes da casa e, para desespero dos pais, a quem os recursos financeiros eram limitados, deu de estragar com rabiscos coloridos, todos os cadernos do colégio.
─ É um caso perdido - diziam.
Quando fez quinze anos, Guiomar pôde escolher o seu primeiro presente.
─ Desde que não seja muito caro - preveniu-lhe o pai.
─ Quero tinta, pincéis e telas - respondeu a menina, com segurança.
A partir daí, começou a pintar o mundo. Descobriu-se um inegável talento para as artes plásticas, passou a retratar, com muita eficiência, a paisagem bucólica de sua cidade. Transformou o seu quartinho de adolescente num desarrumado atelier e não mais permitiu que lhe faltassem tintas pincéis e telas.
Fez cursos, venceu concursos, recebeu prêmios e elogios. Ficou famosa na região, mas continuou pintando com a mesma determinação febril com que invalidara cadernos.
Em meio ao desvario de uma exposição inaugural, alguns anos mais tarde, Guiomar foi assediada insistentemente por um moço de porte altaneiro e olhos venenosos, que despertou nela um rebuliço interior, até então desconhecido. O envolvimento foi inevitável. Os pais aprovaram. Finalmente a filha deixaria as esquisitices dos hábitos solitários. Agiria como as moças "normais" de sua idade.
O rapaz provinha de gente abastada e íntegra. Bom marido para botar juízo na cabeça zonza de quem vivia aluada, lambuzando-se de tintas e fedendo a solventes.
Mas, independentemente de qualquer outro motivo, o que importava a Guiomar era o fato de encontrar-se completamente enfeitiçada. Ficou tão excitada com a descoberta do amor, que passou a pintar com muito mais frequência e com muito mais beleza. O namorado ficava plantado na sala, ouvindo os queixumes do futuro sogro e a lengalenga interminável da sogra,  enquanto Guiomar, no cômodo contíguo, deliciava-se com a construção de uma obra.
Depois, vinha repleta de satisfação. Acariciava-o com os dedos multicoloridos e dizia, com toda a sensibilidade de artista e toda a sinceridade de amante, que o amava muito. Mas pecava ao ignorar a contrariedade que causava nele aquele desprendimento involuntário, considerado como recusa e indiferença.
Junto com o noivado veio o conselho da mãe, o sermão do pai e a imposição taxativa do noivo:
─ Se me amas de verdade, pare de pintar e dedique-se a mim!
─ E se eu não parar? - perguntou Guiomar, temerosa.
─ Vou-me embora! Não volto nunca mais.
A possibilidade de perdê-lo provocou nela um súbito estremecimento que a moça julgou ser medo. Abraçou-o soluçando e prometeu abandonar o ofício da arte e naquele exato momento começou a adoecer.
Uma semana antes do casamento, Guiomar foi internada numa clínica médica. Submeteu-se a minuciosos exames, mas não diagnosticaram a enfermidade.
─ Dói muito! - dizia chorando, contorcendo-se sob o cobertor.
Mas quando perguntavam onde doía, ela assumia uma postura infantil. Fazia muxoxo e dizia não saber.
─ Só sei que dói! - murmurava entre soluços.
A moça emagreceu assustadoramente e vivia se queixando daquele sofrimento repentino. Definhava a olhos vistos, para desespero da mãe que voltava a ver na filha o mesmo corpinho mirrado e os mesmos olhinhos esbugalhados da infância. Eram dores improcedentes que se distribuíam pelos diversos membros do corpo e provocavam uma invencível inapetência.
Uma noite, no curto espaço entre uma crise e outra, Guiomar sonhou com o noivo. Mas no sonho ele não possuía olhar cativante, nem porte altaneiro, porém uma enorme cabeça de burro, com orelhas salientes e olhos inexpressivos. Vestia-se com deselegância e oferecia a ela enormes pincéis, tintas de cores variadas e muitas telas brancas. Mas, à medida que os entregava, tornavam-se vassouras, rodos, desinfetantes, aventais, panos de chão...
A moça acordou sobressaltada e nunca mais sentiu por ele o mesmo amor. Rompeu o noivado. Reconciliou-se com as antigas telas inacabadas. As dores desapareceram. O apetite voltou com uma irremediável veemência.
A mãe a felicitou. O noivo desapareceu. O pai a expulsou de casa. E Guiomar voltou a ganhar o mundo. Desta vez, não somente para pintá-lo, mas para vivê-lo intensamente.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O escultor e o cristo




Naquela manhã, a vida seguia monótona em Araçá. Mas quando a carroça atravessou a cidade transportando o enorme tronco de madeira, as pessoas saíram às janelas e às portas para saberem do que se tratava. Até nós, meninos, interrompemos o futebol e ficamos observando. Vimos a carroça estancar, sob o comando de Germano. Seus condutores rolaram o tronco descomunal até o centro da praça da igreja, colocaram-no em pé e o cobriram com uma grossa lona parda.
Entendemos ser apenas um devaneio do excêntrico escultor que há anos aportara no município. Mas, quando voltamos a cuidar do jogo e os adultos de seus afazeres, percebemos não haver outro assunto mais interessante que aquele, para se comentar.
Germano era um homem de cara azeda, completamente avesso a falações. Dormia num banco da praça. Inicialmente nos deixou escabreados, depois percebemos ser somente um andarilho inofensivo e ficamos em paz. Durante o dia, metia-se nas matas em busca de pedaços de madeira. À noite, enquanto a cidade dormia, escalavrava os tocos, dava-lhes formas e expressões. De manhã, enfiava num saco de aniagem os formões, o martelete e a pedra de afiar, acomodava-os sob o banco e dirigia-se para o Empório São Judas Tadeu, levando pequenas esculturas para serem trocadas por alimento e bebida.
Chico Arruda, comerciante de pouquíssimos escrúpulos, fingia desinteresse. Olhava com desdém para as peças sobre o balcão e oferecia muito pouco por elas. Fiel ao seu habitual mutismo, Germano nunca contestava a transação. Voltava para a praça abraçado a enlatados de validade vencida e a vinhos envinagrados, e se dava por satisfeito.
Após a aparição do tronco, o escultor deixou de percorrer as matas e de procurar Chico Arruda. A partir daquele dia, não mais arredou pé da praça. Durante todo o tempo vigiava a peça protegida pela lona. Apenas nas altas horas da noite, quando a cidade se aquietava, retirava a cobertura e esculpia a madeira.
Certa manhã, percebemos que Germano havia se descuidado da vigília e espalhamos a notícia. A praça ficou entupida de curiosos. Chico Arruda chegou ofegante. Já se sentindo dono da peça, arrancou a capa protetora com um safanão e desnudou a escultura.
A comoção foi tão grande ante a exposição da obra que, naquele exato momento, principiou-se uma ladainha em louvor a Nossa Senhora das Dores que nunca mais cessou, pois, à reza dos araçaenses, uniu-se a oração dos infindáveis romeiros que passaram a chegar em comboios ao lugarejo ermo, até então abandonado à solidão da Serra da Mata mineira.
Tratava-se da mais perfeita imagem, em tamanho natural, da mãe do Cristo, ostentando nos braços o corpo imolado do filho. Tamanha era a verdade emanada dos olhos zelosos de Nossa Senhora, que passaram a atribuir a ela meia dúzia de graças alcançadas ali mesmo, naquela inesquecível manhã.
Com a fama da escultura a propagar-se vertiginosamente, criou-se um rebuliço tão intenso em Araçá, que o vigário mandou ampliar o templo, construir um salão para os romeiros, com lavabos e alojamentos. Solicitou também ao bispo que fossem remetidos padres adjuntos para atender à demanda. Os devotos paroquianos destituíram São Judas Tadeu da condição de padroeiro do município e colocaram-se sob a tutela espiritual de Nossa Senhora das Dores. O prefeito providenciou o alargamento e o capeamento das ruas estreitas e descalças. O delegado tratou de aumentar o contingente policial com o intuito de equilibrar o repentino caos instaurado na cidadezinha. Os ilustres vereadores, prevendo considerável aumento de tributos municipais, concederam-se generosos acréscimos salariais.
O comércio intumesceu descontroladamente devido à invasão dos camelôs, com suas barraquinhas multicolores e seus gritos dissonantes, disputando a atenção e os cobres dos transeuntes sedentos de graça; oferecendo-lhes, a preços exíguos, todas as quinquilharias necessárias à purificação dos pecados, fossem eles mortais ou veniais. Sem o menor constrangimento, empurravam sobre a gente desprovida de malícias, incensos nauseabundos, bugigangas sacras, réplicas miniaturadas da imagem da santa milagreira, velas, castiçais e uma infinidade de objetos comprovadamente eficazes para a remoção - sem  o menor sacrifício íntimo - das nódoas daquelas almas endividadas.
A praça tornou-se inabitável. Germano não viu outro jeito a não ser mudar-se para a capela mortuária do cemitério, em busca de sossego. Para lá levou as velhas ferramentas e tentou dar continuidade à sua arte. Mas, apesar de ser ali o único lugar isento do turbilhão sísmico, do fanatismo religioso e do comércio oportunista, não encontrou paz que lhe restabelecesse a inspiração. Era como se a confecção da santa tivesse sugado todo o seu manancial inventivo. Ficou nulo. Vazio. Impotente.
A sobriedade do retiro, somada à indolência constante e à fome, fez Germano mergulhar numa profunda depressão. Adoeceu no corpo e na alma. Chorava, vendo os formões enferrujarem-se e o martelete jogado num canto da capela.
O dono do antigo empório, transformado agora no imponente Supermercado Nossa Senhora das Dores, tendo vendido com sobra de lucros as peças trocadas por vinho azedo e comida estragada, procurou Germano a fim de lhe propor promissora sociedade. Como encontrou o artista decadente e incapacitado para a produção, desistiu da investida. Achou melhor negociar as miniaturas pré-fabricadas da padroeira.
À noite, quando a cidade sossegava e os vendedores recolhiam suas barracas, Germano esgueirava-se até a praça e ficava sentado num banco defronte à santa, mirando-a, rogando em muda oração que ela lhe devolvesse a inspiração perdida. Mas a mãe do Cristo, impassível à súplica do artista, mantinha os olhos piedosos voltados apenas para o filho morto em seus braços.
Numa madrugada, acometido de intensa febre, o escultor dirigiu-se, sob incessante tempestade, à praça da igreja, levando as ferramentas. Protegido pelo rumor do temporal, reentalhou a madeira.
Quando os primeiros raios de um sol frouxo refletiam luzes nos espelho das poças, os camelôs que chegavam para o trabalho precisaram esfregar os olhos sonolentos para se certificarem de que a cena à sua frente não era apenas a miragem de um sonho impensável.
Germano havia arrebatado dos braços de Nossa Senhora das Dores o corpo do filho ferido e deitara-se no lugar dele; braços pendidos, carcaça inerte. Em sua face, finalmente, a mesma serenidade estampada no semblante do Cristo deposto.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Reminiscências




Inicio estes registros sem saber ao certo se os conseguirei terminar. Minhas mãos estão endurecidas pela doença que vai aos poucos me consumindo. As palavras formam um desenho tremido, desalinhado, e os meus pensamentos, antes claros e convictos, são hoje apagados e confusos. Escrevo com a inevitável perplexidade de quem se olha demoradamente no espelho molhado, onde a imagem, distorcida pelo efeito da água, mostra mais rugas no rosto e mais opacidade nos olhos do que a aparência real.
É certo que envelheci mais do que devia. As amarguras da vida – tanto as que busquei, quanto as que se projetaram sobre mim – tornaram-me precocemente velho; ou pior: amargamente velho.
Resta-me hoje a solidão irremediável dos insociáveis. Um catre macio num quarto asseado de paredes brancas e um criado-mudo de ébano, em cuja gaveta estão trancados os medicamentos de nomes complicados que me mantêm vivo e sobre o qual a foto desbotada da família que um dia tive, sorri entre o quadrado da moldura. Lembranças remotas que o tempo insiste em dilapidar, tanto na antiga fotografia, quanto no recôndito submundo de minha mente senil.
Nasci num vilarejo perdido no interior deste imenso país. De meu pai, guardo uma recordação anuviada, calada e ausente. Nunca fizemos o menor esforço para nos entendermos. Alimentamos, reciprocamente, uma incompatibilidade que nos levou a agir como se o outro fosse invisível, inodoro e insípido. De minha mãe não guardo nada, pois quis Deus que ela partisse para outras esferas antes mesmo que eu houvesse desmamado. Irmãos, não tive.
Durante a minha infância, uma infinidade de mulheres frequentava o meu quarto durante o dia e o de meu pai, à noite. Lavavam-me, alimentavam-me e me ninavam, às vezes. Algumas cheiravam bem e me tratavam com tolerância. Outras, impregnavam o cômodo com odores nauseabundos de aguardente e tabaco, eram impacientes e perversas.
Todas elas, assim como o meu pai, nunca passaram de sombras apagadas e disformes em minha memória, como essas gravuras em marca d’água, que ilustram o fundo da página escrita, sem interferir no primeiro plano. Não cultivei por eles qualquer tipo de sentimento. Jamais aflorou em mim um ínfimo pensamento de gratidão ou de revolta. Naquele tempo, eu não ruminava atritos.
Eu tinha 23 anos quando meu pai morreu. O corpo precocemente corroído pelos excessos. Senti prazer e alívio, negar para quê? Enterrei-o numa cova rasa e me casei, um mês depois, com a filha de um religioso. Assumi a condição de pequeno agropecuário. Não possuía riquezas, mas o leite gerado pelo pequeno rebanho e a produção agrícola do sítio permitiam-me sustentar, de forma digna e decente, a patroa e os nove filhos que concebemos. Tornei-me um homem honesto, trabalhador e honrado.
Mas, quando eu começava a sentir a mão do tempo pesando sobre os ombros, fui procurado pelos três filhos mais velhos. Disseram-me que iam para a cidade grande, atrás de melhores recursos. Achavam que a vida na roça, além de dura e ingrata, era previsivelmente pobre. Entrei em desespero. Sem a ajuda deles, não poderia cultivar as terras e ordenhar o gado. Contratar camaradas era inviável com o pouco que ali era produzido. As crianças menores eram só despesa. A insônia rondou minha cama durante semanas, enquanto a empolgação dos rapazes crescia a olhos vistos.
Estava eu lamentando com o gerente da fábrica de laticínios, onde fora buscar o cheque do fornecimento de leite, quando soube da novidade: o governo federal estava oferecendo empréstimo num programa de incentivo à produção rural. Dinheiro limpo, em boa quantia, com juros irrisórios e carência de um ano para o vencimento da primeira fatura.
Voltei para casa flutuando em nuvens. Chamei meus filhos e assegurei-lhes que não precisariam mais ir embora. Daquele dia em diante, as coisas iriam mudar completamente.
Vencidos os trâmites burocráticos, o empréstimo foi aprovado de forma relativamente fácil. Deveria tê-lo acompanhado um funcionário do governo para orientar na aplicação do capital, mas este nunca deu as caras. A conta bancária, antes tão magra, engordou de tal forma, que o gerente do banco – que mal me conhecia – chamou-me ao escritório, ofereceu-me cafezinho e água gelada. Depois me aconselhou a fazer aplicações financeiras, segundo ele, seguras e rentáveis.
Inicialmente, fiquei atabalhoado. Não sabia o que fazer: Comprar mais terras? Onde? Mais reses? Mudar-me? Confabulava com minha esposa nas madrugadas insones em que a lua invadia todas as frestas da cumeeira e explodia em fachos lancinantes sobre os móveis e as paredes do quarto. Mas Teodora pouco ajudava, pois, assim como eu, nada entendia de investimentos e, como andasse às voltas com a gravidez do nosso décimo filho, uma sonolência incontrolável não a permitia ouvir as minhas ladainhas por mais que alguns minutos. As respostas, que principiavam com um desenxabido “hum-hum, hum-hum”, transformavam-se num ressono tão inquietante, que quase me levava à loucura.
Um mês depois de haver adquirido o empréstimo, o filho mais velho voltou a me procurar, dizendo que ainda pensava em partir. Falou que precisava de um bom emprego para comprar roupas novas, bons calçados e, quem sabe, uma moto... Eu não quis ouvir mais nada. Levei-o à cidade, comprei-lhe roupas da moda, botas envernizadas e dei-lhe de presente uma motocicleta.
Os outros filhos, enciumados, exigiram a mesma coisa e eu não titubeei. Aliás, empolguei-me tanto que, com o incentivo da prole, acabei trocando a velha caminhonete por outra novinha em folha. Para as filhas, comprei vestidos estampados, assinei revistas de fotonovelas e adquiri aparelhos de tevê e toca-discos de última geração. Para os filhos pequenos, brinquedos eletrônicos que eles nem sabiam direito como usar. Para Teodora, que a tudo assistia pateticamente, mandei buscar, na capital, móveis e utensílios domésticos que só existiam em meia dúzia de casas daquela cidade.
Como tudo aquilo consumisse muita energia elétrica, comprei também e mandei instalar na propriedade um possante gerador de eletricidade, substituindo as antigas lamparinas a querosene por expansivas lâmpadas incandescentes, em torno das quais as mariposas faziam festa.
Cedendo às lamúrias do meu sogro, doei para a sua instituição religiosa um moderníssimo sistema de alto-falantes que, instalado numa das torres da ermida edificada por ele, obrigava todo o vilarejo a ouvir os seus intermináveis e incontestáveis sermões vespertinos, embalados por nostálgicas músicas sacras.
O dinheiro foi gasto com uma velocidade tão grande que, quando a primeira fatura chegou em minhas mãos, não havia um único centavo na conta bancária. A produção do sítio em nada aumentara. Pior, diminuíra muito, pois os meus filhos agora só queriam saber de “dar rolé de motoca” e “azarar as gatinhas”, diziam, numa linguagem nunca ensinada nem compreendida por mim.
Minhas filhas, que antes madrugavam para a labuta, tornaram-se dorminhocas, passando a acordar tarde, pois ficavam assistindo tevê até altas horas da noite. As roupas, os móveis e os utensílios novos estavam deteriorados. As motocicletas dos jovens, arruinadas pelas péssimas condições das estradas. A caminhonete nova, devido aos impulsos do motor possante que eu não consegui amestrar, caíra comigo numa ribanceira, ficando totalmente destruída. O acidente me deixou capenga da perna direita e com um incômodo cocuruto no antebraço esquerdo. Acabei readquirindo o carro antigo pelo dobro do preço que o havia vendido.
A única reação que tive, quando recebi o boleto bancário, indicando o valor a ser pago e a data do vencimento, mostrando, inclusive, os juros e  as multas a serem acrescidas, em caso de atraso, foi correr para a casinhola que ficava nos fundos do quintal e, em meio a um surto incontrolável de ventosidades fétidas e estrondosas, deixar-me esvair numa diarreia ácida que durou horas e escalavrou-me dolorosas assaduras no assento. Depois disto, perdi o sossego e, consequentemente, a saúde.
As correspondências bancárias, lembrando-me o sério compromisso assumido, encontravam atalhos e chegavam, às vezes, duas ou três na mesma semana. As faturas foram vencendo uma após outra com uma premência irremediável. Os juros, as multas, as correções monetárias e todos os demais diabos, somados à dívida principal tornaram-se uma massa com fermento em demasia. Cresceram assustadoramente, diante de minha impotente perplexidade.
Meus filhos foram, um a um, mudando-se para a cidade grande. As reses foram vendidas para abrandar a fúria do credor, mas de nada adiantou. Os moirões apodreceram, as cercas que delimitavam a propriedade caíram e não havia quem as consertasse. As pastagens foram invadidas pelas ervas daninhas, sem que houvesse meio de impedi-las. As roças tornaram-se improdutivas por falta de adubagem. Até o filho que nascera por último, como se antevisse e não quisesse participar da miséria que rondava a família, morreu antes de completar um ano de idade, numa tétrica noite de temporal.
No dia em que o oficial de justiça foi tomar posse das minhas terras, em nome do credor, atraquei-me com ele. Rolamos por uma ribanceira. Eu, grudado na goela dele. Ele, grunhindo: “Umpifff... Umpifff...”, perdendo o chapéu, a pasta preta, a compostura...
Desnecessário dizer que fui preso. Na delegacia, sofri um enfarte. Internaram-me às pressas. Passei três meses entre a vida e a morte, mas sobrevivi. Teodora, coitada, não teve a mesma sorte.
Não tive mais em que trabalhar. E, mesmo se tivesse, cadê saúde? Passei alguns anos vivendo de favores, parasitando nas casas dos meus filhos, desagradando-os com os meus conselhos, minhas implicâncias diante de certas atitudes vulgares, como as caras multicoloridas de minhas filhas e as indecentes microssaias que insistiam em usar. Concluíram que eu estava caduco e me internaram neste abrigo geriátrico, num bairro distante e frio. Há seis meses não recebo visita.
Há, próximo deste asilo, um cão que, ao ladrar, lembra-me o Valente, única recordação de minha infância que me chega por inteiro. Era ele um cachorro de pelagem marrom, sem raça específica, desses que em ambientes urbanos vivem mergulhados em latões de lixo, com as orelhas constantemente erguidas e a cauda sempre em festa. Lá na roça, andava a desentocar tatus e a morder, de forma burra e irresponsável, o dorso dos ouriços. Amiúde chegava ganindo, com o focinho abarrotado de espinhos que precisavam ser arrancados com a torquês. Passava dias amuado, procurando água e sombra. A boca inchada, os olhos marejados... Mas nunca aprendia a lição, pois no primeiro descuido, lá ia o teimoso atrás dos espinhudos.
Sempre que ouço os latidos deste cachorro e penso no Valente, não consigo deixar de comparar certas atitudes humanas às inconsequentes teimosias dele. A vida girando em círculos e nós repetindo os mesmos erros, ininterruptamente. Não amei o meu pai. Meus filhos não me amam e, certamente, os filhos deles não os amarão. Seguiremos assim, mordendo em ouriços, espetando-nos em dolorosos espinhos, recolhendo-nos amuados e voltando a repetir os erros, até que nos tornemos verdadeiramente racionais.