O fogo do inferno
Rebento bastardo dum sítio isolado no interior do Brasil, Salustiano
nasceu e cresceu na miséria. Cultivou terras alheias, ordenhou gado alheio,
passou mil dificuldades, mas sobreviveu. Moço ainda ganhou estrada. Retirou-se
para a cidade grande. Aprendeu ofício de servente de pedreiro.
Um dia, pelejando em propriedade de gente graúda, retribuído num olhar
desavisado, apaixonou-se. Chamava-se Emereciana a jovem serviçal da casa.
Saudável, recatada e, no modo do nordestino dizer, um pitéu! Mas, problema. A
cabrinha possuía religião e era tinhosa que só a peste! Única exigência feita
ao pretenso futuro marido, em forma de quadrinha:
Só dou o meu coração
E o resto dos troços meus
Se o moço for bom cristão
E se for temente a Deus.
E mais não disse. Salustiano relutou no princípio, depois cedeu.
Paixão é isto, que remédio? Trocou o hábito das cachacinhas no boteco pelo
culto religioso. Comprou paletó no brechó e, no sebo, uma bíblia pouco usada.
Pura artimanha de conquista. O pobre-diabo não conseguia sequer rabiscar o
próprio nome.
Nos dias de culto espiritual, chegava cedo. Esperava Emereciana na
porta do templo; sorriso encardido de nicotina e o livro sagrado metido no
desvão do sovaco. No início, mal ouvia o que o pregador falava, pois não
despregava os olhos cobiçosos do decote, ainda que bem comportado, e do pequeno
trecho de canela que o longo saiote da namorada insinuava.
O tempo passou. O casamento se configurou e o corpo da mulher se
desfigurou pelas seguidas gravidezes. Salustiano passou a ouvir mais
atentamente aquele que se autodenominava Pescador de Homens. E ouviu com tanta
atenção e com tanta desconfiança, que se matriculou num curso noturno de
alfabetização para adultos. Precisava certificar-se de que as coisas ditas pelo
pregador estavam mesmo escritas no Livro Antigo.
Mal aprendeu a ler, convenceu-se de que estava tudo errado. O sujeito
andava muito mal intencionado, criando invencionices para cobrar, de modo
vexatório e persistente, a contribuição do dízimo. Salustiano, agora, mais
pobre que nunca, por ter que sustentar um grande lote de filhos famintos, sem
condições de manter em dia o pagamento do templo, morria de vergonha quando as
cobranças vinham inseridas no sermão. E elas vinham sempre!
─ A Casa de Deus, para manter-se de pé, depende do comprometimento dos seus seguidores -fuzilava o pregador.
E a orelha do pobre servente queimava. O coitado suava frio.
Desconcertado, movia seus robustos dedões de sertanejo dentro do sapato adquirido
no brechó, sempre um ou dois números abaixo do ideal.
─ Ah, infeliz! Este recado só pode ter sido pra mim - e se contorcia
de raiva.
Escarafunchando a bíblia, conheceu e se impressionou com a história de
Abraão. Sujeito que valeu em muito o chão que pisou e o jabá que digeriu. Amigo
quase íntimo de Deus, gente da melhor qualidade; pensava Salustiano, no seu
limitado alcance intelectual.
─ Isso é que é homem! - dizia de si para si, enquanto lutava com a
própria nulidade, tentando decifrar as emaranhadas dissertações do Velho
Testamento.
Um dia em que sua paciência foi levada à fervura, durante o sermão que
uma vez mais inquiria a colheita do dízimo, Salustiano ergueu-se num salto e,
do meio da turba atônita, desafiou o pregador. Chamou-o de mercenário
excomungado e o mandou para o quinto do inferno.
Os obreiros do templo tentaram imobilizar o sertanejo para levá-lo ao
altar e arrancar-lhe, a golpes de chibata, o demônio que o estava possuindo.
Mas ele não era homem de se deixar dominar. Saltitou feito cabrito, fugiu dos
seguranças e, antes de ganhar a rua, deu banana para o religioso.
Nunca mais voltou a pisar em igreja e ainda proibiu a família de o
fazer também. Com o desajuste, veio a crise, ou o que passaram a considerar
como tal. Uns pequenos adoeceram, Salustiano perdeu o emprego de quinze anos,
Emereciana sofreu dois abortos seguidos e quase partiu desta para melhor. A
vida na cidade ficou insustentável. A despesa era grande: aluguel, conta de
energia elétrica, conta d’água, gás, quitanda, padaria, farmácia...
O sertanejo lembrou-se da roça, onde água e fogo são de graça; comida
é só plantar que se enche o bucho e até remédio se cultiva na horta. Decidiu
recuar. Voltou para o interior. Arrendou um terreno e trabalhou com afinco. A
plantação cresceu, a família se empanturrou, a vida seguiu curso normal. Mas
uma coisa estava em desacordo: cadê religião?
Bem certo que Salustiano continuava lendo o velho livro. Quanto mais
lia, mais aprendia, a seu modo, é claro. E assim o olho-por-olho, tão propagado
naqueles antigos registros tornou-se a sua diretriz.
Um dia em que a mulher se queixou de saudade de religião, Salustiano
discursou assim:
─ Ninguém mais nesta casa vai sentir falta de igreja, porque esta
noite Deus falou comigo e me mandou erguer um altar pra Ele dentro de nossa
própria casa. Ela se chamará Templo de Abraão de Deus e, a partir de hoje, meu
nome não mais será Salustiano, mas sim, Abraão de Deus, porque assim Ele
determinou.
E, deste modo, surgiu num cantinho longínquo do sertão, o
Templo Evangélico Abraão de Deus. O povinho das redondezas, faminto também de fé, passou a frequentar o
recanto da família de Salustiano, transformado agora em casa religiosa.
Os fiéis ouviam os sermões do pseudo Abraão e tentavam acatar todas as
suas determinações. Choravam, lamentavam-se, pediam perdão a Deus pelos pecados
cometidos e a cometer, e morriam de medo do caldeirão de azeite fervente que está sempre a
postos, esperando os pecadores, nas profundezas do inferno.
Abraão de Deus não poupava ninguém. Velhos, jovens, crianças; todos
eram constantemente ameaçados com as mais inimagináveis torturas a serem
aplicadas pelo Diabo em pessoa, se não obedecessem cegamente às determinações
bíblicas, tão deturpadas pelo limitado raciocínio do emergente pregador, que passou
a se intitular Pescador de Homens.
Quando percebeu que seus seguidores o obedeciam cegamente, morrendo de
medo dos castigos celestiais (ou infernais), Abraão de Deus concluiu que não
havia nada demais em explorar um pouquinho a boa fé alheia. Instituiu o dízimo
no templo e dele se tornou cobrador renitente, inserindo sempre nos sermões a
fatídica cobrança da taxa.
─ Quem não tem dinheiro, paga com víveres e alimentos mesmo. Afinal,
ninguém é tão pobre, que não tenha algo pra dar - repetia enfaticamente. ─ E
ninguém pode ser tão avarento a ponto de não emprestar aos que nada têm - concluía, fuzilando um olhar desconcertante aos mais abastados.
Parte do povinho aderiu. Parte fez ouvidos moucos e para o Pescador de
Homens, ali estava a concretização da tão propagada separação do joio e do
trigo.
Os que aderiam à contribuição tornavam-se ovelhas prediletas do seu
rebanho. Os que se negavam a colaborar eram classificados como ovelhas
desgarradas e, deste modo, deixavam de fazer jus aos maravilhosos júbilos celestiais, cujo caminho passava pelo pedágio do astuto homenzinho.
Salustiano, ou melhor, Abraão de Deus prosperou a olhos vistos. Passou
a andar de terno engomadinho, comprou bicicleta nova, adquiriu propriedades,
abriu conta poupança na agência bancária e abandonou a labuta braçal. Enxada,
foice e arado viraram desafetos. As mãos, antes tão calejadas, tornaram-se
sensíveis e improdutivas.
A gentinha titubeou. Alertadas pelos mais atentos, as ovelhas
prediletas também abandonaram o rebanho. Abraão sentiu no bolso a debandada e
desesperou-se. Passou a cercar o povo na rua, nas roças, e até em seus lares.
Bíblia na mão e o dedo em riste, advertindo-os sobre a terrível ameaça
representada pelo fogo do inferno.
Que voltassem ao Templo. Que não se entregassem às artimanhas de Satã.
Que não deixassem sua fé esmorecer-se. Que isso... que aquilo... Tudo em vão.
Nos dias de culto, somente Emereciana e os filhos presentes. Salustiano,
desesperado.
Um dia, no ápice do seu desequilíbrio, decretou a circuncisão dos
filhos varões. Para mostrar-lhes que não doía nadinha, fez sua própria cirurgia
na frente dos meninos e provocou um pânico generalizado, pois acabou desmaiando
de dor e de medo do sangramento provocado pela bárbara operação, realizada com
uma lâmina de barbear.
Vendo que o marido andava aluado, temendo pela segurança dos filhos,
Emereciana catou a prole e, alegando necessidade de visitar uns parentes, fugiu
para bem longe dali. Sem se dar conta do abandono sofrido, Abraão de Deus
continuou preocupado apenas em ruminar a decepção causada pela debandada das
ovelhas prediletas do seu rebanho. Aquelas a quem tentara salvar da perdição
eterna, em troca, tão somente, de uns míseros agradinhos.
─ O que fazer, Deus meu? Como convencer essa gentinha, dos malefícios
a que está se sujeitando? Como livrá-la do castigo eterno? - perguntava-se.
Aí surgiu a grande ideia: Uma festa! Uma festa com muita comida e
bebida de graça. O povo haveria de ir. Ah, se haveria!
E assim, numa tenebrosa noite, aproveitando-se da ausência da família
em casa, Abraão de Deus cuidou de tudo. O Templo abandonado voltou a se encher.
Quase todo o vilarejo estava ali, comendo, bebendo e se refestelando com o
banquete oferecido. A tarrafa do Pescador de Homens estava abarrotada.
O ex-servente de pedreiro,
tendo saído discretamente, circundou o Templo. Em torno dele despejou uma
imensa quantidade de gasolina. Horas antes, uma muralha de galhos secos havia
sido estrategicamente erguida ao redor das paredes.
Quando as primeiras pessoas começaram a se dar conta do forte cheiro
do combustível e do calor repentino, era muito tarde. O fogo já havia sido
ateado e as chamas altaneiras, seguidas de um estrondo ensurdecedor,
circundavam inteiramente o local, não permitindo a qualquer vivente livrar-se
do terrível destino.
A uma boa distância da fogueira, Abrão de Deus sentou-se num toco de
lenha, exausto, porém satisfeito. Acendeu o cachimbo e ficou admirando o fogo
que crepitava e as labaredas que bruxuleavam ao vento, despendendo um
fortíssimo cheiro de carne queimada. Olhou para o céu, com seus olhos quase
misericordiosos e disse, cheio de razão:
─ O Senhor é testemunha de que eu avisei. Mas este povo é teimoso, meu
Pai! Ninguém acreditou no fogo do inferno!
Estirou os beiços em direção à fornalha e sussurrou:
─ Agora, olha aí. Vê só no que deu aquela teimosia toda!
Nossa...a ignorância levando vantagem mais uma vez! E assim acontece em muitas atitudes por falta do conhecimento verdadeiro das lições de Jesus... Belo exemplo!
ResponderExcluirVerdade, a ignorância na maioria das vezes nos faz enxergar o mundo aos olhos do mundo... ;)
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