sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O fogo do inferno




Rebento bastardo dum sítio isolado no interior do Brasil, Salustiano nasceu e cresceu na miséria. Cultivou terras alheias, ordenhou gado alheio, passou mil dificuldades, mas sobreviveu. Moço ainda ganhou estrada. Retirou-se para a cidade grande. Aprendeu ofício de servente de pedreiro.
Um dia, pelejando em propriedade de gente graúda, retribuído num olhar desavisado, apaixonou-se. Chamava-se Emereciana a jovem serviçal da casa. Saudável, recatada e, no modo do nordestino dizer, um pitéu! Mas, problema. A cabrinha possuía religião e era tinhosa que só a peste! Única exigência feita ao pretenso futuro marido, em forma de quadrinha:

Só dou o meu coração
E o resto dos troços meus
Se o moço for bom cristão
E se for temente a Deus.

E mais não disse. Salustiano relutou no princípio, depois cedeu. Paixão é isto, que remédio? Trocou o hábito das cachacinhas no boteco pelo culto religioso. Comprou paletó no brechó e, no sebo, uma bíblia pouco usada. Pura artimanha de conquista. O pobre-diabo não conseguia sequer rabiscar o próprio nome.
Nos dias de culto espiritual, chegava cedo. Esperava Emereciana na porta do templo; sorriso encardido de nicotina e o livro sagrado metido no desvão do sovaco. No início, mal ouvia o que o pregador falava, pois não despregava os olhos cobiçosos do decote, ainda que bem comportado, e do pequeno trecho de canela que o longo saiote da namorada insinuava.
O tempo passou. O casamento se configurou e o corpo da mulher se desfigurou pelas seguidas gravidezes. Salustiano passou a ouvir mais atentamente aquele que se autodenominava Pescador de Homens. E ouviu com tanta atenção e com tanta desconfiança, que se matriculou num curso noturno de alfabetização para adultos. Precisava certificar-se de que as coisas ditas pelo pregador estavam mesmo escritas no Livro Antigo.
Mal aprendeu a ler, convenceu-se de que estava tudo errado. O sujeito andava muito mal intencionado, criando invencionices para cobrar, de modo vexatório e persistente, a contribuição do dízimo. Salustiano, agora, mais pobre que nunca, por ter que sustentar um grande lote de filhos famintos, sem condições de manter em dia o pagamento do templo, morria de vergonha quando as cobranças vinham inseridas no sermão. E elas vinham sempre!
─ A Casa de Deus, para manter-se de pé, depende do comprometimento dos seus seguidores -fuzilava o pregador.
E a orelha do pobre servente queimava. O coitado suava frio. Desconcertado, movia seus robustos dedões de sertanejo dentro do sapato adquirido no brechó, sempre um ou dois números abaixo do ideal.
─ Ah, infeliz! Este recado só pode ter sido pra mim - e se contorcia de raiva.
Escarafunchando a bíblia, conheceu e se impressionou com a história de Abraão. Sujeito que valeu em muito o chão que pisou e o jabá que digeriu. Amigo quase íntimo de Deus, gente da melhor qualidade; pensava Salustiano, no seu limitado alcance intelectual.
─ Isso é que é homem! - dizia de si para si, enquanto lutava com a própria nulidade, tentando decifrar as emaranhadas dissertações do Velho Testamento.
Um dia em que sua paciência foi levada à fervura, durante o sermão que uma vez mais inquiria a colheita do dízimo, Salustiano ergueu-se num salto e, do meio da turba atônita, desafiou o pregador. Chamou-o de mercenário excomungado e o mandou para o quinto do inferno.
Os obreiros do templo tentaram imobilizar o sertanejo para levá-lo ao altar e arrancar-lhe, a golpes de chibata, o demônio que o estava possuindo. Mas ele não era homem de se deixar dominar. Saltitou feito cabrito, fugiu dos seguranças e, antes de ganhar a rua, deu banana para o religioso.
Nunca mais voltou a pisar em igreja e ainda proibiu a família de o fazer também. Com o desajuste, veio a crise, ou o que passaram a considerar como tal. Uns pequenos adoeceram, Salustiano perdeu o emprego de quinze anos, Emereciana sofreu dois abortos seguidos e quase partiu desta para melhor. A vida na cidade ficou insustentável. A despesa era grande: aluguel, conta de energia elétrica, conta d’água, gás, quitanda, padaria, farmácia...
O sertanejo lembrou-se da roça, onde água e fogo são de graça; comida é só plantar que se enche o bucho e até remédio se cultiva na horta. Decidiu recuar. Voltou para o interior. Arrendou um terreno e trabalhou com afinco. A plantação cresceu, a família se empanturrou, a vida seguiu curso normal. Mas uma coisa estava em desacordo: cadê religião?
Bem certo que Salustiano continuava lendo o velho livro. Quanto mais lia, mais aprendia, a seu modo, é claro. E assim o olho-por-olho, tão propagado naqueles antigos registros tornou-se a sua diretriz.
Um dia em que a mulher se queixou de saudade de religião, Salustiano discursou assim:
─ Ninguém mais nesta casa vai sentir falta de igreja, porque esta noite Deus falou comigo e me mandou erguer um altar pra Ele dentro de nossa própria casa. Ela se chamará Templo de Abraão de Deus e, a partir de hoje, meu nome não mais será Salustiano, mas sim, Abraão de Deus, porque assim Ele determinou.
E, deste modo, surgiu num cantinho longínquo do sertão, o Templo Evangélico Abraão de Deus. O povinho das redondezas, faminto também de fé, passou a frequentar o recanto da família de Salustiano, transformado agora em casa religiosa.
Os fiéis ouviam os sermões do pseudo Abraão e tentavam acatar todas as suas determinações. Choravam, lamentavam-se, pediam perdão a Deus pelos pecados cometidos e a cometer, e morriam de medo do caldeirão de azeite fervente que está sempre a postos, esperando os pecadores, nas profundezas do inferno.
Abraão de Deus não poupava ninguém. Velhos, jovens, crianças; todos eram constantemente ameaçados com as mais inimagináveis torturas a serem aplicadas pelo Diabo em pessoa, se não obedecessem cegamente às determinações bíblicas, tão deturpadas pelo limitado raciocínio do emergente pregador, que passou a se intitular Pescador de Homens.
Quando percebeu que seus seguidores o obedeciam cegamente, morrendo de medo dos castigos celestiais (ou infernais), Abraão de Deus concluiu que não havia nada demais em explorar um pouquinho a boa fé alheia. Instituiu o dízimo no templo e dele se tornou cobrador renitente, inserindo sempre nos sermões a fatídica cobrança da taxa.
─ Quem não tem dinheiro, paga com víveres e alimentos mesmo. Afinal, ninguém é tão pobre, que não tenha algo pra dar - repetia enfaticamente. ─ E ninguém pode ser tão avarento a ponto de não emprestar aos que nada têm - concluía, fuzilando um olhar desconcertante aos mais abastados.
Parte do povinho aderiu. Parte fez ouvidos moucos e para o Pescador de Homens, ali estava a concretização da tão propagada separação do joio e do trigo.
Os que aderiam à contribuição tornavam-se ovelhas prediletas do seu rebanho. Os que se negavam a colaborar eram classificados como ovelhas desgarradas e, deste modo, deixavam de fazer jus aos maravilhosos júbilos celestiais, cujo caminho passava pelo pedágio do astuto homenzinho.
Salustiano, ou melhor, Abraão de Deus prosperou a olhos vistos. Passou a andar de terno engomadinho, comprou bicicleta nova, adquiriu propriedades, abriu conta poupança na agência bancária e abandonou a labuta braçal. Enxada, foice e arado viraram desafetos. As mãos, antes tão calejadas, tornaram-se sensíveis e improdutivas.
A gentinha titubeou. Alertadas pelos mais atentos, as ovelhas prediletas também abandonaram o rebanho. Abraão sentiu no bolso a debandada e desesperou-se. Passou a cercar o povo na rua, nas roças, e até em seus lares. Bíblia na mão e o dedo em riste, advertindo-os sobre a terrível ameaça representada pelo fogo do inferno.
Que voltassem ao Templo. Que não se entregassem às artimanhas de Satã. Que não deixassem sua fé esmorecer-se. Que isso... que aquilo... Tudo em vão. Nos dias de culto, somente Emereciana e os filhos presentes. Salustiano, desesperado.
Um dia, no ápice do seu desequilíbrio, decretou a circuncisão dos filhos varões. Para mostrar-lhes que não doía nadinha, fez sua própria cirurgia na frente dos meninos e provocou um pânico generalizado, pois acabou desmaiando de dor e de medo do sangramento provocado pela bárbara operação, realizada com uma lâmina de barbear.
Vendo que o marido andava aluado, temendo pela segurança dos filhos, Emereciana catou a prole e, alegando necessidade de visitar uns parentes, fugiu para bem longe dali. Sem se dar conta do abandono sofrido, Abraão de Deus continuou preocupado apenas em ruminar a decepção causada pela debandada das ovelhas prediletas do seu rebanho. Aquelas a quem tentara salvar da perdição eterna, em troca, tão somente, de uns míseros agradinhos.
─ O que fazer, Deus meu? Como convencer essa gentinha, dos malefícios a que está se sujeitando? Como livrá-la do castigo eterno? - perguntava-se.
Aí surgiu a grande ideia: Uma festa! Uma festa com muita comida e bebida de graça. O povo haveria de ir. Ah, se haveria!
E assim, numa tenebrosa noite, aproveitando-se da ausência da família em casa, Abraão de Deus cuidou de tudo. O Templo abandonado voltou a se encher. Quase todo o vilarejo estava ali, comendo, bebendo e se refestelando com o banquete oferecido. A tarrafa do Pescador de Homens estava abarrotada.
 O ex-servente de pedreiro, tendo saído discretamente, circundou o Templo. Em torno dele despejou uma imensa quantidade de gasolina. Horas antes, uma muralha de galhos secos havia sido estrategicamente erguida ao redor das paredes.
Quando as primeiras pessoas começaram a se dar conta do forte cheiro do combustível e do calor repentino, era muito tarde. O fogo já havia sido ateado e as chamas altaneiras, seguidas de um estrondo ensurdecedor, circundavam inteiramente o local, não permitindo a qualquer vivente livrar-se do terrível destino.
A uma boa distância da fogueira, Abrão de Deus sentou-se num toco de lenha, exausto, porém satisfeito. Acendeu o cachimbo e ficou admirando o fogo que crepitava e as labaredas que bruxuleavam ao vento, despendendo um fortíssimo cheiro de carne queimada. Olhou para o céu, com seus olhos quase misericordiosos e disse, cheio de razão:
─ O Senhor é testemunha de que eu avisei. Mas este povo é teimoso, meu Pai! Ninguém acreditou no fogo do inferno!
Estirou os beiços em direção à fornalha e sussurrou:
─ Agora, olha aí. Vê só no que deu aquela teimosia toda!

2 comentários:

  1. Nossa...a ignorância levando vantagem mais uma vez! E assim acontece em muitas atitudes por falta do conhecimento verdadeiro das lições de Jesus... Belo exemplo!

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  2. Verdade, a ignorância na maioria das vezes nos faz enxergar o mundo aos olhos do mundo... ;)

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