segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Reminiscências




Inicio estes registros sem saber ao certo se os conseguirei terminar. Minhas mãos estão endurecidas pela doença que vai aos poucos me consumindo. As palavras formam um desenho tremido, desalinhado, e os meus pensamentos, antes claros e convictos, são hoje apagados e confusos. Escrevo com a inevitável perplexidade de quem se olha demoradamente no espelho molhado, onde a imagem, distorcida pelo efeito da água, mostra mais rugas no rosto e mais opacidade nos olhos do que a aparência real.
É certo que envelheci mais do que devia. As amarguras da vida – tanto as que busquei, quanto as que se projetaram sobre mim – tornaram-me precocemente velho; ou pior: amargamente velho.
Resta-me hoje a solidão irremediável dos insociáveis. Um catre macio num quarto asseado de paredes brancas e um criado-mudo de ébano, em cuja gaveta estão trancados os medicamentos de nomes complicados que me mantêm vivo e sobre o qual a foto desbotada da família que um dia tive, sorri entre o quadrado da moldura. Lembranças remotas que o tempo insiste em dilapidar, tanto na antiga fotografia, quanto no recôndito submundo de minha mente senil.
Nasci num vilarejo perdido no interior deste imenso país. De meu pai, guardo uma recordação anuviada, calada e ausente. Nunca fizemos o menor esforço para nos entendermos. Alimentamos, reciprocamente, uma incompatibilidade que nos levou a agir como se o outro fosse invisível, inodoro e insípido. De minha mãe não guardo nada, pois quis Deus que ela partisse para outras esferas antes mesmo que eu houvesse desmamado. Irmãos, não tive.
Durante a minha infância, uma infinidade de mulheres frequentava o meu quarto durante o dia e o de meu pai, à noite. Lavavam-me, alimentavam-me e me ninavam, às vezes. Algumas cheiravam bem e me tratavam com tolerância. Outras, impregnavam o cômodo com odores nauseabundos de aguardente e tabaco, eram impacientes e perversas.
Todas elas, assim como o meu pai, nunca passaram de sombras apagadas e disformes em minha memória, como essas gravuras em marca d’água, que ilustram o fundo da página escrita, sem interferir no primeiro plano. Não cultivei por eles qualquer tipo de sentimento. Jamais aflorou em mim um ínfimo pensamento de gratidão ou de revolta. Naquele tempo, eu não ruminava atritos.
Eu tinha 23 anos quando meu pai morreu. O corpo precocemente corroído pelos excessos. Senti prazer e alívio, negar para quê? Enterrei-o numa cova rasa e me casei, um mês depois, com a filha de um religioso. Assumi a condição de pequeno agropecuário. Não possuía riquezas, mas o leite gerado pelo pequeno rebanho e a produção agrícola do sítio permitiam-me sustentar, de forma digna e decente, a patroa e os nove filhos que concebemos. Tornei-me um homem honesto, trabalhador e honrado.
Mas, quando eu começava a sentir a mão do tempo pesando sobre os ombros, fui procurado pelos três filhos mais velhos. Disseram-me que iam para a cidade grande, atrás de melhores recursos. Achavam que a vida na roça, além de dura e ingrata, era previsivelmente pobre. Entrei em desespero. Sem a ajuda deles, não poderia cultivar as terras e ordenhar o gado. Contratar camaradas era inviável com o pouco que ali era produzido. As crianças menores eram só despesa. A insônia rondou minha cama durante semanas, enquanto a empolgação dos rapazes crescia a olhos vistos.
Estava eu lamentando com o gerente da fábrica de laticínios, onde fora buscar o cheque do fornecimento de leite, quando soube da novidade: o governo federal estava oferecendo empréstimo num programa de incentivo à produção rural. Dinheiro limpo, em boa quantia, com juros irrisórios e carência de um ano para o vencimento da primeira fatura.
Voltei para casa flutuando em nuvens. Chamei meus filhos e assegurei-lhes que não precisariam mais ir embora. Daquele dia em diante, as coisas iriam mudar completamente.
Vencidos os trâmites burocráticos, o empréstimo foi aprovado de forma relativamente fácil. Deveria tê-lo acompanhado um funcionário do governo para orientar na aplicação do capital, mas este nunca deu as caras. A conta bancária, antes tão magra, engordou de tal forma, que o gerente do banco – que mal me conhecia – chamou-me ao escritório, ofereceu-me cafezinho e água gelada. Depois me aconselhou a fazer aplicações financeiras, segundo ele, seguras e rentáveis.
Inicialmente, fiquei atabalhoado. Não sabia o que fazer: Comprar mais terras? Onde? Mais reses? Mudar-me? Confabulava com minha esposa nas madrugadas insones em que a lua invadia todas as frestas da cumeeira e explodia em fachos lancinantes sobre os móveis e as paredes do quarto. Mas Teodora pouco ajudava, pois, assim como eu, nada entendia de investimentos e, como andasse às voltas com a gravidez do nosso décimo filho, uma sonolência incontrolável não a permitia ouvir as minhas ladainhas por mais que alguns minutos. As respostas, que principiavam com um desenxabido “hum-hum, hum-hum”, transformavam-se num ressono tão inquietante, que quase me levava à loucura.
Um mês depois de haver adquirido o empréstimo, o filho mais velho voltou a me procurar, dizendo que ainda pensava em partir. Falou que precisava de um bom emprego para comprar roupas novas, bons calçados e, quem sabe, uma moto... Eu não quis ouvir mais nada. Levei-o à cidade, comprei-lhe roupas da moda, botas envernizadas e dei-lhe de presente uma motocicleta.
Os outros filhos, enciumados, exigiram a mesma coisa e eu não titubeei. Aliás, empolguei-me tanto que, com o incentivo da prole, acabei trocando a velha caminhonete por outra novinha em folha. Para as filhas, comprei vestidos estampados, assinei revistas de fotonovelas e adquiri aparelhos de tevê e toca-discos de última geração. Para os filhos pequenos, brinquedos eletrônicos que eles nem sabiam direito como usar. Para Teodora, que a tudo assistia pateticamente, mandei buscar, na capital, móveis e utensílios domésticos que só existiam em meia dúzia de casas daquela cidade.
Como tudo aquilo consumisse muita energia elétrica, comprei também e mandei instalar na propriedade um possante gerador de eletricidade, substituindo as antigas lamparinas a querosene por expansivas lâmpadas incandescentes, em torno das quais as mariposas faziam festa.
Cedendo às lamúrias do meu sogro, doei para a sua instituição religiosa um moderníssimo sistema de alto-falantes que, instalado numa das torres da ermida edificada por ele, obrigava todo o vilarejo a ouvir os seus intermináveis e incontestáveis sermões vespertinos, embalados por nostálgicas músicas sacras.
O dinheiro foi gasto com uma velocidade tão grande que, quando a primeira fatura chegou em minhas mãos, não havia um único centavo na conta bancária. A produção do sítio em nada aumentara. Pior, diminuíra muito, pois os meus filhos agora só queriam saber de “dar rolé de motoca” e “azarar as gatinhas”, diziam, numa linguagem nunca ensinada nem compreendida por mim.
Minhas filhas, que antes madrugavam para a labuta, tornaram-se dorminhocas, passando a acordar tarde, pois ficavam assistindo tevê até altas horas da noite. As roupas, os móveis e os utensílios novos estavam deteriorados. As motocicletas dos jovens, arruinadas pelas péssimas condições das estradas. A caminhonete nova, devido aos impulsos do motor possante que eu não consegui amestrar, caíra comigo numa ribanceira, ficando totalmente destruída. O acidente me deixou capenga da perna direita e com um incômodo cocuruto no antebraço esquerdo. Acabei readquirindo o carro antigo pelo dobro do preço que o havia vendido.
A única reação que tive, quando recebi o boleto bancário, indicando o valor a ser pago e a data do vencimento, mostrando, inclusive, os juros e  as multas a serem acrescidas, em caso de atraso, foi correr para a casinhola que ficava nos fundos do quintal e, em meio a um surto incontrolável de ventosidades fétidas e estrondosas, deixar-me esvair numa diarreia ácida que durou horas e escalavrou-me dolorosas assaduras no assento. Depois disto, perdi o sossego e, consequentemente, a saúde.
As correspondências bancárias, lembrando-me o sério compromisso assumido, encontravam atalhos e chegavam, às vezes, duas ou três na mesma semana. As faturas foram vencendo uma após outra com uma premência irremediável. Os juros, as multas, as correções monetárias e todos os demais diabos, somados à dívida principal tornaram-se uma massa com fermento em demasia. Cresceram assustadoramente, diante de minha impotente perplexidade.
Meus filhos foram, um a um, mudando-se para a cidade grande. As reses foram vendidas para abrandar a fúria do credor, mas de nada adiantou. Os moirões apodreceram, as cercas que delimitavam a propriedade caíram e não havia quem as consertasse. As pastagens foram invadidas pelas ervas daninhas, sem que houvesse meio de impedi-las. As roças tornaram-se improdutivas por falta de adubagem. Até o filho que nascera por último, como se antevisse e não quisesse participar da miséria que rondava a família, morreu antes de completar um ano de idade, numa tétrica noite de temporal.
No dia em que o oficial de justiça foi tomar posse das minhas terras, em nome do credor, atraquei-me com ele. Rolamos por uma ribanceira. Eu, grudado na goela dele. Ele, grunhindo: “Umpifff... Umpifff...”, perdendo o chapéu, a pasta preta, a compostura...
Desnecessário dizer que fui preso. Na delegacia, sofri um enfarte. Internaram-me às pressas. Passei três meses entre a vida e a morte, mas sobrevivi. Teodora, coitada, não teve a mesma sorte.
Não tive mais em que trabalhar. E, mesmo se tivesse, cadê saúde? Passei alguns anos vivendo de favores, parasitando nas casas dos meus filhos, desagradando-os com os meus conselhos, minhas implicâncias diante de certas atitudes vulgares, como as caras multicoloridas de minhas filhas e as indecentes microssaias que insistiam em usar. Concluíram que eu estava caduco e me internaram neste abrigo geriátrico, num bairro distante e frio. Há seis meses não recebo visita.
Há, próximo deste asilo, um cão que, ao ladrar, lembra-me o Valente, única recordação de minha infância que me chega por inteiro. Era ele um cachorro de pelagem marrom, sem raça específica, desses que em ambientes urbanos vivem mergulhados em latões de lixo, com as orelhas constantemente erguidas e a cauda sempre em festa. Lá na roça, andava a desentocar tatus e a morder, de forma burra e irresponsável, o dorso dos ouriços. Amiúde chegava ganindo, com o focinho abarrotado de espinhos que precisavam ser arrancados com a torquês. Passava dias amuado, procurando água e sombra. A boca inchada, os olhos marejados... Mas nunca aprendia a lição, pois no primeiro descuido, lá ia o teimoso atrás dos espinhudos.
Sempre que ouço os latidos deste cachorro e penso no Valente, não consigo deixar de comparar certas atitudes humanas às inconsequentes teimosias dele. A vida girando em círculos e nós repetindo os mesmos erros, ininterruptamente. Não amei o meu pai. Meus filhos não me amam e, certamente, os filhos deles não os amarão. Seguiremos assim, mordendo em ouriços, espetando-nos em dolorosos espinhos, recolhendo-nos amuados e voltando a repetir os erros, até que nos tornemos verdadeiramente racionais.

2 comentários:

  1. E assim é a lei, uma corrente de escolhas e consequências, nos embalando no circulo das vidas com aqueles que convivemos. O importante é a lição.
    Adorei... Abraços

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  2. Nossa.. belo conto!! É a vida é uma grande escola! :)

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