O
escultor e o cristo
Naquela manhã, a vida seguia
monótona em Araçá. Mas quando a carroça atravessou a cidade
transportando o enorme tronco de madeira, as pessoas saíram às janelas e às
portas para saberem do que se tratava. Até nós, meninos, interrompemos o
futebol e ficamos observando. Vimos a
carroça estancar, sob o comando de Germano. Seus condutores rolaram o tronco
descomunal até o centro da praça da igreja, colocaram-no em pé e o cobriram com
uma grossa lona parda.
Entendemos ser
apenas um devaneio do excêntrico escultor que há anos aportara no município.
Mas, quando voltamos a cuidar do jogo e os adultos de seus afazeres, percebemos
não haver outro assunto mais interessante que aquele, para se comentar.
Germano era um
homem de cara azeda, completamente avesso a falações. Dormia num banco da
praça. Inicialmente nos deixou escabreados, depois percebemos ser somente um
andarilho inofensivo e ficamos em paz. Durante o dia,
metia-se nas matas em busca de pedaços de madeira. À noite, enquanto a cidade dormia,
escalavrava os tocos, dava-lhes formas e expressões. De manhã,
enfiava num saco de aniagem os formões, o martelete e a pedra de afiar,
acomodava-os sob o banco e dirigia-se para o Empório São Judas Tadeu, levando
pequenas esculturas para serem trocadas por alimento e bebida.
Chico Arruda,
comerciante de pouquíssimos escrúpulos, fingia desinteresse. Olhava com desdém
para as peças sobre o balcão e oferecia muito pouco por elas. Fiel ao seu
habitual mutismo, Germano nunca contestava a transação. Voltava para a praça
abraçado a enlatados de validade vencida e a vinhos envinagrados, e se dava por
satisfeito.
Após a
aparição do tronco, o escultor deixou de percorrer as matas e de procurar Chico
Arruda. A partir daquele dia, não mais arredou pé da praça. Durante todo o
tempo vigiava a peça protegida pela lona. Apenas nas altas horas da noite,
quando a cidade se aquietava, retirava a cobertura e esculpia a madeira.
Certa manhã,
percebemos que Germano havia se descuidado da vigília e espalhamos a notícia. A
praça ficou entupida de curiosos. Chico Arruda
chegou ofegante. Já se sentindo dono da peça, arrancou a capa protetora com um
safanão e desnudou a escultura.
A comoção foi
tão grande ante a exposição da obra que, naquele exato momento, principiou-se
uma ladainha em louvor a Nossa Senhora das Dores que nunca mais cessou, pois, à
reza dos araçaenses, uniu-se a oração dos infindáveis romeiros que passaram a
chegar em comboios ao lugarejo ermo, até então abandonado à solidão da Serra da
Mata mineira.
Tratava-se da
mais perfeita imagem, em tamanho natural, da mãe do Cristo, ostentando nos
braços o corpo imolado do filho. Tamanha era a
verdade emanada dos olhos zelosos de Nossa Senhora, que passaram a atribuir a
ela meia dúzia de graças alcançadas ali mesmo, naquela inesquecível manhã.
Com a fama da
escultura a propagar-se vertiginosamente, criou-se um rebuliço tão intenso em
Araçá, que o vigário mandou ampliar o templo, construir um salão para os
romeiros, com lavabos e alojamentos. Solicitou também ao bispo que fossem
remetidos padres adjuntos para atender à demanda. Os devotos
paroquianos destituíram São Judas Tadeu da condição de padroeiro do município e
colocaram-se sob a tutela espiritual de Nossa Senhora das Dores. O prefeito
providenciou o alargamento e o capeamento das ruas estreitas e descalças. O delegado
tratou de aumentar o contingente policial com o intuito de equilibrar o
repentino caos instaurado na cidadezinha. Os ilustres
vereadores, prevendo considerável aumento de tributos municipais, concederam-se
generosos acréscimos salariais.
O comércio
intumesceu descontroladamente devido à invasão dos camelôs, com suas
barraquinhas multicolores e seus gritos dissonantes, disputando a atenção e os
cobres dos transeuntes sedentos de graça; oferecendo-lhes, a preços exíguos,
todas as quinquilharias necessárias à purificação dos pecados, fossem eles
mortais ou veniais. Sem o menor
constrangimento, empurravam sobre a gente desprovida de malícias, incensos
nauseabundos, bugigangas sacras, réplicas miniaturadas da imagem da santa
milagreira, velas, castiçais e uma infinidade de objetos comprovadamente
eficazes para a remoção - sem o menor
sacrifício íntimo - das nódoas daquelas almas endividadas.
A praça
tornou-se inabitável. Germano não viu outro jeito a não ser mudar-se para a
capela mortuária do cemitério, em busca de sossego. Para lá levou
as velhas ferramentas e tentou dar continuidade à sua arte. Mas, apesar de ser
ali o único lugar isento do turbilhão sísmico, do fanatismo religioso e do
comércio oportunista, não encontrou paz que lhe restabelecesse a inspiração. Era como se a
confecção da santa tivesse sugado todo o seu manancial inventivo. Ficou nulo.
Vazio. Impotente.
A sobriedade
do retiro, somada à indolência constante e à fome, fez Germano mergulhar numa
profunda depressão. Adoeceu no corpo e na alma. Chorava, vendo os formões
enferrujarem-se e o martelete jogado num canto da capela.
O dono do
antigo empório, transformado agora no imponente Supermercado Nossa Senhora das
Dores, tendo vendido com sobra de lucros as peças trocadas por vinho azedo e
comida estragada, procurou Germano a fim de lhe propor promissora sociedade. Como encontrou
o artista decadente e incapacitado para a produção, desistiu da investida.
Achou melhor negociar as miniaturas pré-fabricadas da padroeira.
À noite,
quando a cidade sossegava e os vendedores recolhiam suas barracas, Germano
esgueirava-se até a praça e ficava sentado num banco defronte à santa,
mirando-a, rogando em muda oração que ela lhe devolvesse a inspiração perdida. Mas a mãe do Cristo, impassível à súplica do artista, mantinha os olhos piedosos voltados
apenas para o filho morto em seus braços.
Numa
madrugada, acometido de intensa febre, o escultor dirigiu-se, sob incessante
tempestade, à praça da igreja, levando as ferramentas. Protegido pelo rumor do
temporal, reentalhou a madeira.
Quando os
primeiros raios de um sol frouxo refletiam luzes nos espelho das poças, os
camelôs que chegavam para o trabalho precisaram esfregar os olhos sonolentos
para se certificarem de que a cena à sua frente não era apenas a miragem de um
sonho impensável.
Germano havia
arrebatado dos braços de Nossa Senhora das Dores o corpo do filho ferido e
deitara-se no lugar dele; braços pendidos, carcaça inerte. Em sua face,
finalmente, a mesma serenidade estampada no semblante do Cristo deposto.
Lindo ensinamentos nestas palavras amigo!! Gostei muito e muitas vezes passamos despercebidos diante dos nossos irmão e deixamos de enxergar neles a presença do Cristo!! Obrigado pela mensagem!! ;)
ResponderExcluirCarlos - Pescadores do Amor
Maravilhoso e emocionante... parabéns amigo, Amei!
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