sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Cativeiro da Alma




Foi só de querer matar o tempo – troço imponderável – que Zé Rufino se enleou nos caprichos do destino. Nada de especial ali, no povoado. Apenas a madorna lerda dos dias chochos que seguiam enfileirados.
Fora isto, o de sempre: o ribeiro, a aragem, o silêncio, o serviço, o sono... O sonho não! Sonho, no modo do Zé Rufino ver, era desatino. E desatino gera ambições, arroubos desenfreados, empilhamentos de bens que invariavelmente se tornam males. Inutilidade purinha!
Daquele modo estava bem bom. O tempo lerdo a compassar a vida que desfilava defronte à vidraça dos olhos, sempre abarrotados de mesmice.
E a alma – ah, a alma! – inteirinha imersa na invencível melancolia de quem se apega com exagero à solidão, mas, livre! Inegavelmente livre!
Zé Rufino era – por que não dizer? – feliz! Destituído de valores supérfluos, desnudo mesmo de projeções arrojadas. Bastava um bem-te-vi que o visse... Um pio de nhambu que ouvisse... Um cicio de rio... Ou nem isso. Qualquer insignificância preenchia-lhe, desde que não amolasse os sentidos.
Por isso, ele acobertava ou não possuía mesmo nenhuma cicatriz interior. Vadiava, sem eira nem beira, pelos caminhos do vento. Garimpava estrelas na solidão das noites. Degustava brisas e sóis na mansuetude dos dias. E só!
Mas quando, em pleno ápice de sua bucólica existência, ocorreu o desregramento, Zé Rufino deixou no rastro os desarranjos, os infortúnios e todos os diabos que a novidade trouxe no lombo. Perebas mesmo, que lhe escalavraram a alma e provocaram sangria desatada. Gamação braba!
– Ai, pobrezinho do  Zé! – pareciam ruminar a aragem, o regato e as estrelas.
Ela tinha que chegar e desordenar a ordem das coisas? Tinha – estrupício de vida! – com malquerente rudeza, que enovelar o pobre do Zé? Endoidecer o Zé? Azucrinar o Zé, que nunca nem tinha cogitado de se enlear em concupiscências?
Mas chegou assim, bem na brejeirice do vento matutino. Sorriu com um trejeito insinuante de rubros lábios. Bailou a ruiva cabeleira no mormaço da manhã e iluminou, com um par de olhos faiscantes, tudo o que de escuridão habitava nele. Cativou-lhe a alma de modo irreversível. Irresponsável até. Que maravilhosa miséria!
Então, desprovido de sossego e silêncio, Zé Rufino caiu em desgraça. Não que fosse tão desgraça assim. No princípio é sempre um mel doce que ceva... Um feitiço que atiça... Parece até ser coisa boa.
Da despretensão de empilhar valores o pobre já foi se perdendo. Por mais desapegada que seja, fêmea é sempre fêmea e só gosta de fincar raiz  em terreno sólido. Daí, Zé abriu covas novas, alicerçou base no solo, ergueu paredes contra o vento, fechou telhado sob as estrelas e aprisionou-se.
Cadê o voto de desprendimento? A aragem na cara? O sol nos olhos? O garimpo a céu aberto? Paciência!
Não levou tempo que se preze para gear na fervura do causo. Previsivelmente! Ninguém respira direito com um nó apertando o pescoço e o coração sempre aos pinotes, feito potro indomado.
Daí, a cabeleira ruiva que se sacudia ao léu e os olhos que tanta luz projetavam na escuridade dele, perderam o viço. E tudo o que havia sido edificado e que aparentava grande valia, tornou-se um inútil amontoado de tijolos caiados, com um espaçosinho tão espremido por dentro e um ar tão saturado de angústias, que só fazia sufocar. Diacho de vida!
Mas, compromisso conubial, uma vez firmado, é troço indissolúvel para quem tem justeza de caráter. E o tinha de sobra o pobre Zé Rufino.
– Alto é o custo de quem desvirtua essa virtude – dizia ele.
Então, o amante só fez amuar. Largou o timão da vida... Singrou à deriva... Não! À deriva, não! Mas sob o cabresto dela, que vivia com o indicador em riste. Fazer o quê?
Zé Rufino mostrou-se bom de tranco. Seguiu assim, macambúzio, porém fiel.
Nunca é demais, no entanto, que se campeiem enredos de feliz viver. Cada qual é contente ou descontente a seu modo. E, diga-se por dizer, nem todo mundo se contenta com o descontentamento que tem.
Ah, demasiado é qualquer tempo que se viva sem contar estrelas! Sem aconchego de sol... Sem chamego de aragem... E tudo isto, em função de quem, muitas vezes, nem faz por merecer consideração.
E veio – previsível fado das relações conturbadas – o dia aziago em que o fel transbordou.
Zé Rufino viu com seus olhos infelizes. Ninguém lhe contou, não. A ruiva cabeleira serpenteante e os olhos que um dia esparramaram luz na obscuridade dele, serpenteavam e alumiavam agora noutra direção. Indubitavelmente!
Se fosse só picuinha de gente mexeriqueira, se fosse cisma auferida em ciumeiras desenfreadas... Mas, não! Ali, ó! Claro e certo, como o dia é dia e a noite é noite! Prevaricação da grossa! Indesculpável!
Quanta amolação para o pobre do Zé Rufino! Não bastava a alma desprovida de paz? O corpo ausente de sol? Os olhos cerceados de luz? E aquele maldito ar saturado, no espaço agredido por tijolos e telhas?...
– Ai, ai, ai, ai, ai...! – assoprava-se, tentando abrandar a queimura. Inutilmente!
Quando se pegou sem saída, agarrou-se à desgraça e flertou com ela mesma. Os olhos luminosos, o pobre não mais vira. E da cabeleira ruiva só pôde ver o coque preso à nuca, saindo porta afora.
– Que o capeta te carregue! – quis gritar.
Mas permaneceu mudo, porque sentia que um cerco de arame farpado encurralava-lhe as vísceras da alma. Além disso, aquele troço morno que lhe saltava dos olhos, que contornava as abas do nariz e invadia os cantos da boca tinha um gosto salobro, obrigando-o a mantê-la fechada.
E ela se foi. Não com o capeta, como o Zé quisera propor. Mas, se foi.
E o pobre coitado nunca mais conseguiu se livrar do cativeiro erguido pelas próprias mãos. Nunca mais degustou sóis e brisas na mansuetude dos dias... Nunca mais voltou a garimpar estrelas na solidão das noites...
Mas, finalmente adquiriu cicatrizes interiores. E foi justamente a partir daí que reconsiderou suas considerações e desandou a sonhar!

2 comentários:

  1. Que forte...imagino quantos Zé Rufino não existem por aí!
    Abraços

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  2. Muito bom!! ;) Obrigado!! Jesus nos abençoe!! \O/

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