Cativeiro da Alma
Foi só de querer matar o
tempo – troço imponderável – que Zé Rufino se enleou nos caprichos do destino.
Nada de especial ali, no povoado. Apenas a madorna lerda dos dias chochos que
seguiam enfileirados.
Fora isto, o de sempre: o
ribeiro, a aragem, o silêncio, o serviço, o sono... O sonho não! Sonho, no modo
do Zé Rufino ver, era desatino. E desatino gera ambições, arroubos
desenfreados, empilhamentos de bens que invariavelmente se tornam males.
Inutilidade purinha!
Daquele modo estava bem bom.
O tempo lerdo a compassar a vida que desfilava defronte à vidraça dos olhos,
sempre abarrotados de mesmice.
E a alma – ah, a alma! –
inteirinha imersa na invencível melancolia de quem se apega com exagero à
solidão, mas, livre! Inegavelmente livre!
Zé Rufino era – por que não
dizer? – feliz! Destituído de valores supérfluos, desnudo mesmo de projeções
arrojadas. Bastava um bem-te-vi que o visse... Um pio de nhambu que ouvisse...
Um cicio de rio... Ou nem isso. Qualquer insignificância preenchia-lhe, desde
que não amolasse os sentidos.
Por isso, ele acobertava ou
não possuía mesmo nenhuma cicatriz interior. Vadiava, sem eira nem beira, pelos
caminhos do vento. Garimpava estrelas na solidão das noites. Degustava brisas e
sóis na mansuetude dos dias. E só!
Mas quando, em pleno ápice de
sua bucólica existência, ocorreu o desregramento, Zé Rufino deixou no rastro os
desarranjos, os infortúnios e todos os diabos que a novidade trouxe no lombo.
Perebas mesmo, que lhe escalavraram a alma e provocaram sangria desatada. Gamação braba!
– Ai, pobrezinho do Zé! – pareciam ruminar a aragem, o regato e
as estrelas.
Ela tinha que chegar e
desordenar a ordem das coisas? Tinha – estrupício de vida! – com malquerente
rudeza, que enovelar o pobre do Zé? Endoidecer o Zé? Azucrinar o Zé, que nunca
nem tinha cogitado de se enlear em concupiscências?
Mas chegou assim, bem na
brejeirice do vento matutino. Sorriu com um trejeito insinuante de rubros
lábios. Bailou a ruiva cabeleira no mormaço da manhã e iluminou, com um par de
olhos faiscantes, tudo o que de escuridão habitava nele. Cativou-lhe a alma de
modo irreversível. Irresponsável até. Que maravilhosa miséria!
Então, desprovido de sossego
e silêncio, Zé Rufino caiu em desgraça. Não que fosse tão desgraça assim. No
princípio é sempre um mel doce que ceva... Um feitiço que atiça... Parece até
ser coisa boa.
Da despretensão de empilhar
valores o pobre já foi se perdendo. Por mais desapegada que seja, fêmea é
sempre fêmea e só gosta de fincar raiz
em terreno sólido. Daí, Zé abriu covas novas,
alicerçou base no solo, ergueu paredes contra o vento, fechou telhado sob as
estrelas e aprisionou-se.
Cadê o voto de
desprendimento? A aragem na cara? O sol nos olhos? O garimpo a céu aberto? Paciência!
Não levou tempo que se preze
para gear na fervura do causo. Previsivelmente! Ninguém respira direito com
um nó apertando o pescoço e o coração sempre aos pinotes, feito potro indomado.
Daí, a cabeleira ruiva que se
sacudia ao léu e os olhos que tanta luz projetavam na escuridade dele, perderam
o viço. E tudo o que havia sido edificado e que aparentava grande valia,
tornou-se um inútil amontoado de tijolos caiados, com um espaçosinho tão espremido
por dentro e um ar tão saturado de angústias, que só fazia sufocar. Diacho de vida!
Mas, compromisso conubial,
uma vez firmado, é troço indissolúvel para quem tem justeza de caráter. E o
tinha de sobra o pobre Zé Rufino.
– Alto é o custo de quem
desvirtua essa virtude – dizia ele.
Então, o amante só fez amuar.
Largou o timão da vida... Singrou à deriva... Não! À deriva, não! Mas sob o
cabresto dela, que vivia com o indicador em riste. Fazer o quê?
Zé Rufino mostrou-se bom de
tranco. Seguiu assim, macambúzio, porém fiel.
Nunca é demais, no entanto,
que se campeiem enredos de feliz viver. Cada qual é contente ou descontente a
seu modo. E, diga-se por dizer, nem todo mundo se contenta com o
descontentamento que tem.
Ah, demasiado é qualquer
tempo que se viva sem contar estrelas! Sem aconchego de sol... Sem chamego de
aragem... E tudo isto, em função de quem, muitas vezes, nem faz por merecer
consideração.
E veio – previsível fado das
relações conturbadas – o dia aziago em que o fel transbordou.
Zé Rufino viu com seus olhos
infelizes. Ninguém lhe contou, não. A ruiva cabeleira serpenteante e os olhos
que um dia esparramaram luz na obscuridade dele, serpenteavam e alumiavam agora
noutra direção. Indubitavelmente!
Se fosse só picuinha de gente
mexeriqueira, se fosse cisma auferida em ciumeiras desenfreadas... Mas, não!
Ali, ó! Claro e certo, como o dia é dia e a noite é noite! Prevaricação da
grossa! Indesculpável!
Quanta amolação para o pobre
do Zé Rufino! Não bastava a alma desprovida de paz? O corpo ausente de sol? Os
olhos cerceados de luz? E aquele maldito ar saturado, no espaço agredido por
tijolos e telhas?...
– Ai, ai, ai, ai, ai...! –
assoprava-se, tentando abrandar a queimura. Inutilmente!
Quando se pegou sem saída,
agarrou-se à desgraça e flertou com ela mesma. Os olhos luminosos, o pobre não
mais vira. E da cabeleira ruiva só pôde ver o coque preso à nuca, saindo porta
afora.
– Que o capeta te carregue! –
quis gritar.
Mas permaneceu mudo, porque
sentia que um cerco de arame farpado encurralava-lhe as vísceras da alma. Além
disso, aquele troço morno que lhe saltava dos olhos, que contornava as abas do
nariz e invadia os cantos da boca tinha um gosto salobro, obrigando-o a
mantê-la fechada.
E ela se foi. Não com o
capeta, como o Zé quisera propor. Mas, se foi.
E o pobre coitado nunca mais
conseguiu se livrar do cativeiro erguido pelas próprias mãos. Nunca mais degustou sóis e
brisas na mansuetude dos dias... Nunca mais voltou a garimpar
estrelas na solidão das noites...
Mas, finalmente adquiriu
cicatrizes interiores. E foi justamente a partir daí que reconsiderou suas
considerações e desandou a sonhar!
Que forte...imagino quantos Zé Rufino não existem por aí!
ResponderExcluirAbraços
Muito bom!! ;) Obrigado!! Jesus nos abençoe!! \O/
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