Guiomar
─ Faço setenta
anos pelo início da primavera - disse-me Guiomar - e continuo virgem feito uma
ostra. Não apenas por ter nascido no mês de setembro, mas também porque nunca
dormi com homem algum em toda a minha vida.
Disse isso com
um tom de voz tão resoluto, com tanto brilho no olhar, que não deixou
transparecer o menor resquício de nostalgia.
Estávamos
atrapalhados em meio às dezenas de quadros que ela exporia no Salão de Cultura,
onde eu trabalhava. Acabáramos de nos conhecer e aquela mulher intrigante,
demonstrando por mim uma simpatia gratuita, contava-me a vida com uma
espontaneidade tão sincera, que me deixou constrangido.
─ A vantagem
de se ter 70 anos, é que não precisamos ser tão comedidos nesta idade - disse
sorrindo. ─ Minhas verdades não são pecaminosas, apenas cometi o desatino de
ser fiel a mim mesma, de guiar meus próprios passos, ignorando a intransigência
dos que tentaram me deter.
E, assim
dizendo, foi descortinando sua história e inserindo em minha mente tantas
imagens, que precisei escrever sobre elas para libertar-me, em parte, da
profusão de ideias que me sobressaltaram.
Guiomar nasceu
num povoado remoto, no litoral paulista. Do pai guardou, sem rancores, a imagem
austera, embrutecida pelo cotidiano rude da metalurgia. Da mãe, o semblante
dócil e submisso de uma professorinha que fazia versos e tocava pianola nas
horas crepusculares. Dos dois irmãos, a indiferença recíproca.
O maior
deslumbramento de sua infância foi a cópia de um Monet, dependurado na parede de um consultório dentário. Ficou tão
embevecida com a pintura, que perdeu o terror pelo dentista e lamentou
profundamente o término do tratamento. Saiu dali decidida a se tornar pintora. Passou a
desenhar com giz em todas as paredes da casa e, para desespero dos pais, a quem
os recursos financeiros eram limitados, deu de estragar com rabiscos coloridos,
todos os cadernos do colégio.
─ É um caso
perdido - diziam.
Quando fez
quinze anos, Guiomar pôde escolher o seu primeiro presente.
─ Desde que
não seja muito caro - preveniu-lhe o pai.
─ Quero tinta,
pincéis e telas - respondeu a menina, com segurança.
A partir daí,
começou a pintar o mundo. Descobriu-se um inegável talento para as artes
plásticas, passou a retratar, com muita eficiência, a paisagem bucólica de sua
cidade. Transformou o
seu quartinho de adolescente num desarrumado atelier e não mais permitiu que
lhe faltassem tintas pincéis e telas.
Fez cursos,
venceu concursos, recebeu prêmios e elogios. Ficou famosa na região, mas
continuou pintando com a mesma determinação febril com que invalidara cadernos.
Em meio ao
desvario de uma exposição inaugural, alguns anos mais tarde, Guiomar foi
assediada insistentemente por um moço de porte altaneiro e olhos venenosos, que
despertou nela um rebuliço interior, até então desconhecido. O envolvimento foi
inevitável. Os pais
aprovaram. Finalmente a filha deixaria as esquisitices dos hábitos solitários.
Agiria como as moças "normais" de sua idade.
O rapaz
provinha de gente abastada e íntegra. Bom marido para botar juízo na cabeça
zonza de quem vivia aluada, lambuzando-se de tintas e fedendo a solventes.
Mas,
independentemente de qualquer outro motivo, o que importava a Guiomar era o
fato de encontrar-se completamente enfeitiçada. Ficou tão excitada com a
descoberta do amor, que passou a pintar com muito mais frequência e com muito
mais beleza. O namorado
ficava plantado na sala, ouvindo os queixumes do futuro sogro e a lengalenga
interminável da sogra, enquanto Guiomar,
no cômodo contíguo, deliciava-se com a construção de uma obra.
Depois, vinha
repleta de satisfação. Acariciava-o com os dedos multicoloridos e dizia, com
toda a sensibilidade de artista e toda a sinceridade de amante, que o amava
muito. Mas pecava ao ignorar a contrariedade que causava nele aquele
desprendimento involuntário, considerado como recusa e indiferença.
Junto com o
noivado veio o conselho da mãe, o sermão do pai e a imposição taxativa do
noivo:
─ Se me amas
de verdade, pare de pintar e dedique-se a mim!
─ E se eu não
parar? - perguntou Guiomar, temerosa.
─ Vou-me
embora! Não volto nunca mais.
A
possibilidade de perdê-lo provocou nela um súbito estremecimento que a moça
julgou ser medo. Abraçou-o soluçando e prometeu abandonar o ofício da arte e naquele exato
momento começou a adoecer.
Uma semana
antes do casamento, Guiomar foi internada numa clínica médica. Submeteu-se a
minuciosos exames, mas não diagnosticaram a enfermidade.
─ Dói muito! - dizia chorando, contorcendo-se sob o cobertor.
Mas quando
perguntavam onde doía, ela assumia uma postura infantil. Fazia muxoxo e dizia
não saber.
─ Só sei que
dói! - murmurava entre soluços.
A moça
emagreceu assustadoramente e vivia se queixando daquele sofrimento repentino.
Definhava a olhos vistos, para desespero da mãe que voltava a ver na filha o
mesmo corpinho mirrado e os mesmos olhinhos esbugalhados da infância. Eram dores
improcedentes que se distribuíam pelos diversos membros do corpo e provocavam
uma invencível inapetência.
Uma noite, no
curto espaço entre uma crise e outra, Guiomar sonhou com o noivo. Mas no sonho
ele não possuía olhar cativante, nem porte altaneiro, porém uma enorme cabeça
de burro, com orelhas salientes e olhos inexpressivos. Vestia-se com
deselegância e oferecia a ela enormes pincéis, tintas de cores variadas e
muitas telas brancas. Mas, à medida
que os entregava, tornavam-se vassouras, rodos, desinfetantes, aventais, panos
de chão...
A moça acordou
sobressaltada e nunca mais sentiu por ele o mesmo amor. Rompeu o
noivado. Reconciliou-se com as antigas telas inacabadas. As dores
desapareceram. O apetite voltou com uma irremediável veemência.
A mãe a felicitou. O noivo
desapareceu. O pai a expulsou de casa. E Guiomar voltou a ganhar o mundo. Desta vez, não
somente para pintá-lo, mas para vivê-lo intensamente.
Belo texto!! Grandes ensinamentos a respeito da nossa vida!! ;)
ResponderExcluirNossa vida é feita de escolhas e a mais importante é aquela que faz bem a nossa alma... Adorei!
ResponderExcluirMuito bom. Faz parte da vida os momentos de escolha e decisão. Ótima reflexão.
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