quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Guiomar



─ Faço setenta anos pelo início da primavera - disse-me Guiomar - e continuo virgem feito uma ostra. Não apenas por ter nascido no mês de setembro, mas também porque nunca dormi com homem algum em toda a minha vida.
Disse isso com um tom de voz tão resoluto, com tanto brilho no olhar, que não deixou transparecer o menor resquício de nostalgia.
Estávamos atrapalhados em meio às dezenas de quadros que ela exporia no Salão de Cultura, onde eu trabalhava. Acabáramos de nos conhecer e aquela mulher intrigante, demonstrando por mim uma simpatia gratuita, contava-me a vida com uma espontaneidade tão sincera, que me deixou constrangido.
─ A vantagem de se ter 70 anos, é que não precisamos ser tão comedidos nesta idade - disse sorrindo. ─ Minhas verdades não são pecaminosas, apenas cometi o desatino de ser fiel a mim mesma, de guiar meus próprios passos, ignorando a intransigência dos que tentaram me deter.
E, assim dizendo, foi descortinando sua história e inserindo em minha mente tantas imagens, que precisei escrever sobre elas para libertar-me, em parte, da profusão de ideias que me sobressaltaram.
Guiomar nasceu num povoado remoto, no litoral paulista. Do pai guardou, sem rancores, a imagem austera, embrutecida pelo cotidiano rude da metalurgia. Da mãe, o semblante dócil e submisso de uma professorinha que fazia versos e tocava pianola nas horas crepusculares. Dos dois irmãos, a indiferença recíproca.
O maior deslumbramento de sua infância foi a cópia de um Monet, dependurado na parede de um consultório dentário. Ficou tão embevecida com a pintura, que perdeu o terror pelo dentista e lamentou profundamente o término do tratamento. Saiu dali decidida a se tornar pintora. Passou a desenhar com giz em todas as paredes da casa e, para desespero dos pais, a quem os recursos financeiros eram limitados, deu de estragar com rabiscos coloridos, todos os cadernos do colégio.
─ É um caso perdido - diziam.
Quando fez quinze anos, Guiomar pôde escolher o seu primeiro presente.
─ Desde que não seja muito caro - preveniu-lhe o pai.
─ Quero tinta, pincéis e telas - respondeu a menina, com segurança.
A partir daí, começou a pintar o mundo. Descobriu-se um inegável talento para as artes plásticas, passou a retratar, com muita eficiência, a paisagem bucólica de sua cidade. Transformou o seu quartinho de adolescente num desarrumado atelier e não mais permitiu que lhe faltassem tintas pincéis e telas.
Fez cursos, venceu concursos, recebeu prêmios e elogios. Ficou famosa na região, mas continuou pintando com a mesma determinação febril com que invalidara cadernos.
Em meio ao desvario de uma exposição inaugural, alguns anos mais tarde, Guiomar foi assediada insistentemente por um moço de porte altaneiro e olhos venenosos, que despertou nela um rebuliço interior, até então desconhecido. O envolvimento foi inevitável. Os pais aprovaram. Finalmente a filha deixaria as esquisitices dos hábitos solitários. Agiria como as moças "normais" de sua idade.
O rapaz provinha de gente abastada e íntegra. Bom marido para botar juízo na cabeça zonza de quem vivia aluada, lambuzando-se de tintas e fedendo a solventes.
Mas, independentemente de qualquer outro motivo, o que importava a Guiomar era o fato de encontrar-se completamente enfeitiçada. Ficou tão excitada com a descoberta do amor, que passou a pintar com muito mais frequência e com muito mais beleza. O namorado ficava plantado na sala, ouvindo os queixumes do futuro sogro e a lengalenga interminável da sogra,  enquanto Guiomar, no cômodo contíguo, deliciava-se com a construção de uma obra.
Depois, vinha repleta de satisfação. Acariciava-o com os dedos multicoloridos e dizia, com toda a sensibilidade de artista e toda a sinceridade de amante, que o amava muito. Mas pecava ao ignorar a contrariedade que causava nele aquele desprendimento involuntário, considerado como recusa e indiferença.
Junto com o noivado veio o conselho da mãe, o sermão do pai e a imposição taxativa do noivo:
─ Se me amas de verdade, pare de pintar e dedique-se a mim!
─ E se eu não parar? - perguntou Guiomar, temerosa.
─ Vou-me embora! Não volto nunca mais.
A possibilidade de perdê-lo provocou nela um súbito estremecimento que a moça julgou ser medo. Abraçou-o soluçando e prometeu abandonar o ofício da arte e naquele exato momento começou a adoecer.
Uma semana antes do casamento, Guiomar foi internada numa clínica médica. Submeteu-se a minuciosos exames, mas não diagnosticaram a enfermidade.
─ Dói muito! - dizia chorando, contorcendo-se sob o cobertor.
Mas quando perguntavam onde doía, ela assumia uma postura infantil. Fazia muxoxo e dizia não saber.
─ Só sei que dói! - murmurava entre soluços.
A moça emagreceu assustadoramente e vivia se queixando daquele sofrimento repentino. Definhava a olhos vistos, para desespero da mãe que voltava a ver na filha o mesmo corpinho mirrado e os mesmos olhinhos esbugalhados da infância. Eram dores improcedentes que se distribuíam pelos diversos membros do corpo e provocavam uma invencível inapetência.
Uma noite, no curto espaço entre uma crise e outra, Guiomar sonhou com o noivo. Mas no sonho ele não possuía olhar cativante, nem porte altaneiro, porém uma enorme cabeça de burro, com orelhas salientes e olhos inexpressivos. Vestia-se com deselegância e oferecia a ela enormes pincéis, tintas de cores variadas e muitas telas brancas. Mas, à medida que os entregava, tornavam-se vassouras, rodos, desinfetantes, aventais, panos de chão...
A moça acordou sobressaltada e nunca mais sentiu por ele o mesmo amor. Rompeu o noivado. Reconciliou-se com as antigas telas inacabadas. As dores desapareceram. O apetite voltou com uma irremediável veemência.
A mãe a felicitou. O noivo desapareceu. O pai a expulsou de casa. E Guiomar voltou a ganhar o mundo. Desta vez, não somente para pintá-lo, mas para vivê-lo intensamente.

3 comentários:

  1. Belo texto!! Grandes ensinamentos a respeito da nossa vida!! ;)

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  2. Nossa vida é feita de escolhas e a mais importante é aquela que faz bem a nossa alma... Adorei!

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  3. Muito bom. Faz parte da vida os momentos de escolha e decisão. Ótima reflexão.

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