–
Ao diabo com tudo isto! – gritou Nepomuceno, dando um soco no balcão da padaria,
enquanto engolia o último trago de café.
Atirou
umas moedas para o rapazinho do caixa e saiu em disparada, como se tivesse muita
urgência em desenrolar alguma pendenga. Eram 7 horas e 12 minutos de uma
segunda-feira garoenta e fria na cidade de São Paulo.
Nepomuceno
cobriu a cabeça com o gorro da blusa de moletom, enfiou as mãos nos bolsos para
abrandar a friagem e desceu quase correndo a Avenida Brigadeiro Luís Antônio; dobrou
para a direita na esquina da Rua Maria Paula e subiu, num só fôlego, o Viaduto da
Sé, pois pretendia embarcar no metrô. Já estava descendo os degraus de acesso à
estação, quando se deu conta de que, naquele horário, não era tão ruim o
tráfego na Radial Leste, no sentido bairro. Então, decidiu pegar um ônibus no
Terminal Parque Dom Pedro II. De ônibus, não precisaria fazer nenhuma
baldeação.
Deu
meia-volta tão abruptamente, que quase se chocou com um velho magro, de olhos
embotados, que recepcionava os desembarcantes, exibindo no peito uma placa com
a frase “compra-se ouro” e galgou os degraus com tanta urgência, que não
deixava a menor dúvida de que corria contra o tempo.
Oito minutos depois, seguia para
casa. Atrás ficava a região central, com sua frenética aglomeração de veículos
e transeuntes, sua infernal poluição sonora, seus ruídos estridentes de
buzinas, seus roncos de motores impacientes e o pregão lamurioso dos vendedores
de bugigangas.
Era a capital paulistana retomando
o ritmo acelerado de início de semana.
O
ônibus seguia em direção ao bairro numa velocidade normal, mas a Nepomuceno
parecia lento. Lento, se comparado à emergência do seu coração aflito. Por um
instante, pensou no ambiente do trabalho e intranquilizou-se.
Num
dia normal, àquela hora, estaria no edifício em construção, aguardando o
momento de iniciar suas atividades de marceneiro. Mas, naquela manhã, as coisas
fugiram ao controle. Bastaram três minutos, desde que entrara na padaria, para
que toda aquela correria se iniciasse e um turbilhão de pensamentos febris o
levasse a reconsiderar a rotina e a tomar aquela medida, de certo modo,
irresponsável.
Estava olhando a TV, enquanto
tomava o seu café. De repente, entrou no ar uma reportagem de grande impacto e
lhe prendeu a atenção. Aliás, não só a dele, mas de toda a gente que se
encontrava na padaria. Todos, sem exceção, ficaram olhando para a tela, petrificados,
pois a imagem, registrada por um cidadão anônimo, por meio de um desses
aparelhos de telefone celular, era consternadora.
Tratava-se
de um homem que, carregando no colo o corpo da esposa, pranteava
desesperadamente. O fato havia ocorrido na noite do domingo, no estacionamento
de um shopping. O casal havia ido ao cinema e, na saída, se deparou com um
intenso tiroteio entre policiais e assaltantes. Um projétil havia atingido a
cabeça da mulher. Ela estava morta, mas o marido não se conformava e queria,
por todos os meios, levá-la a um pronto-socorro. Chorava e gritava, implorando
para que alguém fizesse alguma coisa. Que não a deixassem morrer; que ele não
poderia viver sem ela; que ela estava esperando o filho tão desejado; que ela
era o único amor da vida dele; que estavam casados há apenas seis meses; que
tinham mil planos...
Gritava
essas coisas e a abraçava, manchando de cor púrpura seu rosto sombrio e sua
alva camisa, beijando a testa lívida da esposa morta. Por fim, extenuado,
sentou-se num canteiro de azaleias, com o cadáver no colo e ficou olhando para
o alto, dizendo coisas desconexas, monologando com Deus, enquanto uma pequena
multidão começava a se aglomerar em torno da dramática cena.
Mediante
à triste reportagem, houve um silêncio coletivo na padaria. Quando alguém abriu
a boca, foi apenas para pronunciar a frase que ficou martelando na cabeça do
Nepomuceno até o momento em que ele tomou a decisão de fazer o que fez.
–
Às vezes, a pessoa precisa morrer para saber que é amada!
E
foi a consternação provocada pela forte cena exposta no telejornal e o apelo
emocional desta frase quase sussurrada, que desencadearam nele aquela ebulição
interior. Numa fração de segundos, Nepomuceno reviveu toda a trajetória do seu desastroso
fim de semana. Pensou em Natália e na infeliz atitude tomada no domingo de
manhã. Por qual motivo? Lembrava-se lá por qual motivo? Com certeza, uma
quirela; uma frase mal interpretada; um incidente pueril... Enfim, nada que
justificasse um domingo inteirinho de contrariedades.
E
a culpa, de quem fora? Que importava? Havia passado o dia todo no boteco,
bebendo com os colegas, discutindo futebol, jogando bilhar. Logo ele, que nem
gostava de beber, nem de jogar bilhar e menos ainda de discutir futebol. Fez
por pirraça! Para deixar a esposa sozinha o domingo inteiro. Comera torresmo
com farofa no bar, desprezando o almoço delicioso que ela sempre lhe preparava
com o maior carinho. Regressara ao lar à noite. Natália, deitada, fingira
dormir quando ele entrou no quarto para se trocar.
Nepomuceno
passara a noite no sofá da sala, com a televisão ligada. De madrugada, acordara
ouvindo uns soluços. A esposa estava chorando baixinho, um pranto triste e
desconsolado. Aí foi ele que fingiu estar dormindo.
Saíra
de casa às 5 horas e 30 minutos em ponto, sem dirigir-lhe a palavra. Mas sabia
que a esposa havia se levantado ao ouvi-lo sair. Sabia que ela havia se
posicionado atrás da janela da sala e que o observara atravessar a rua. Sabia que ela pedira a Deus que o protegesse e o trouxesse para
casa, à noite. Era o que ela sempre fazia, mesmo que estivessem brigados.
A cena da mulher morta nos braços
do marido em desespero fê-lo sentir-se um palerma. Chegou a invejar o rapaz da
reportagem. Não por protagonizar uma cena tão trágica, é lógico, mas pela
flagrante e sincera demonstração de amor que fizera diante de uma minúscula
câmera filmadora que a projetou universo afora. O oportuno filmador não
conseguira enquadrar o rosto da mulher, mas a sua silhueta miúda, a sua negra e
encaracolada cabeleira, o seu jeito frágil e esguio, tudo isso lembrava a
estrutura física de Natália e teve um peso enorme na decisão de Nepomuceno.
–
E se fosse a Natália, ali, morta? - perguntou-lhe uma voz interior.
E
a resposta que obteve de si mesmo foi um nó imenso que se desenvolveu em sua
garganta e o impossibilitou de continuar pensando. Foi então que, num gesto
automático, socou o balcão da padaria e disse aquela frase. Não porque ela lhe
fizesse algum sentido, mas porque foi a única coisa que conseguiu balbuciar:
–
Ao diabo com tudo isto!
Talvez
o “tudo isto” significasse a segunda-feira garoenta e fria; o edifício em
construção na Bela Vista; a contrariedade da chefia por causa da falta
injustificada... Talvez!
E
foi aí que, para espanto de toda a gente que tomava café na padaria, ele saiu
em debandada, descendo a Brigadeiro Luiz Antônio, passando pela Sé e estando
agora a caminho de casa, no contrafluxo do trânsito caótico da Radial Leste, após
ouvir a mágica frase que o impulsionou: “Às vezes, a pessoa precisa morrer para
saber que é amada!”.
Não
era bem assim. Ele amava a esposa e ela não precisaria morrer para sabê-lo. É
certo que nunca o confessara assim, abertamente, mas em seu íntimo não havia a
menor sombra de dúvida. Ele a amava e amava também o filho que há cinco meses
encontrava-se enovelado no útero dela. Amava-os e a ideia de confessar tal
sentimento à esposa somente depois de morta provocou-lhe um arrepio na espinha.
Por
isso, aquela urgência toda. Nepomuceno temia não chegar em casa a tempo.
Parecia apostar corrida com a morte, mesmo sabendo que não deveria haver morte
alguma rondando a esposa ou o filhinho. Mas sabia, também, que certamente era
esse o pensamento do casal do noticiário, no momento em que saía do cinema.
De
qualquer modo, a pessoa que havia sussurrado tal frase cometera um equívoco,
porque ele mesmo, Nepomuceno, estando vivinho da silva, sabia que era amado.
Natália não só o dissera muitas vezes, como escrevera em curtos poemas
dedicados a ele. Alma sensível e delicada, vivia a fazer versos que ele fingia
ler e gostar, mas que não lhe diziam muita coisa. Mas a frase “eu te amo!” Ah!,
esta ele lia, e entendia, e gostava de verdade.
Às
8 horas e 47 minutos, Nepomuceno desembarcou no ponto de ônibus que ficava
próximo de sua casa. Passou na floricultura, comprou um buquê com uma dúzia de
rosas. Depois foi à confeitaria e adquiriu sonhos com
recheio de chocolate – a guloseima preferida de Natália.
E foi assim que invadiu a casa
naquela fria e garoenta manhã de segunda-feira. Com a alma repleta de angústia,
e encheu de luz, perfume e sabor o quarto em penumbras, onde o amor ou a
morte o esperava de braços abertos.
Legal!! ;)
ResponderExcluirSábia decisão do Nepomuceno, reconhecendo e valorizando o amor! Adorei!!
ResponderExcluirÓtimo conto...
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