quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

            


           
            – Ao diabo com tudo isto! – gritou Nepomuceno, dando um soco no balcão da padaria, enquanto engolia o último trago de café.
            Atirou umas moedas para o rapazinho do caixa e saiu em disparada, como se tivesse muita urgência em desenrolar alguma pendenga. Eram 7 horas e 12 minutos de uma segunda-feira garoenta e fria na cidade de São Paulo.
            Nepomuceno cobriu a cabeça com o gorro da blusa de moletom, enfiou as mãos nos bolsos para abrandar a friagem e desceu quase correndo a Avenida Brigadeiro Luís Antônio; dobrou para a direita na esquina da Rua Maria Paula e subiu, num só fôlego, o Viaduto da Sé, pois pretendia embarcar no metrô. Já estava descendo os degraus de acesso à estação, quando se deu conta de que, naquele horário, não era tão ruim o tráfego na Radial Leste, no sentido bairro. Então, decidiu pegar um ônibus no Terminal Parque Dom Pedro II. De ônibus, não precisaria fazer nenhuma baldeação.
            Deu meia-volta tão abruptamente, que quase se chocou com um velho magro, de olhos embotados, que recepcionava os desembarcantes, exibindo no peito uma placa com a frase “compra-se ouro” e galgou os degraus com tanta urgência, que não deixava a menor dúvida de que corria contra o tempo.
Oito minutos depois, seguia para casa. Atrás ficava a região central, com sua frenética aglomeração de veículos e transeuntes, sua infernal poluição sonora, seus ruídos estridentes de buzinas, seus roncos de motores impacientes e o pregão lamurioso dos vendedores de bugigangas.
Era a capital paulistana retomando o ritmo acelerado de início de semana.
            O ônibus seguia em direção ao bairro numa velocidade normal, mas a Nepomuceno parecia lento. Lento, se comparado à emergência do seu coração aflito. Por um instante, pensou no ambiente do trabalho e intranquilizou-se.
            Num dia normal, àquela hora, estaria no edifício em construção, aguardando o momento de iniciar suas atividades de marceneiro. Mas, naquela manhã, as coisas fugiram ao controle. Bastaram três minutos, desde que entrara na padaria, para que toda aquela correria se iniciasse e um turbilhão de pensamentos febris o levasse a reconsiderar a rotina e a tomar aquela medida, de certo modo, irresponsável.
Estava olhando a TV, enquanto tomava o seu café. De repente, entrou no ar uma reportagem de grande impacto e lhe prendeu a atenção. Aliás, não só a dele, mas de toda a gente que se encontrava na padaria. Todos, sem exceção, ficaram olhando para a tela, petrificados, pois a imagem, registrada por um cidadão anônimo, por meio de um desses aparelhos de telefone celular, era consternadora.
           Tratava-se de um homem que, carregando no colo o corpo da esposa, pranteava desesperadamente. O fato havia ocorrido na noite do domingo, no estacionamento de um shopping. O casal havia ido ao cinema e, na saída, se deparou com um intenso tiroteio entre policiais e assaltantes. Um projétil havia atingido a cabeça da mulher. Ela estava morta, mas o marido não se conformava e queria, por todos os meios, levá-la a um pronto-socorro. Chorava e gritava, implorando para que alguém fizesse alguma coisa. Que não a deixassem morrer; que ele não poderia viver sem ela; que ela estava esperando o filho tão desejado; que ela era o único amor da vida dele; que estavam casados há apenas seis meses; que tinham mil planos...
            Gritava essas coisas e a abraçava, manchando de cor púrpura seu rosto sombrio e sua alva camisa, beijando a testa lívida da esposa morta. Por fim, extenuado, sentou-se num canteiro de azaleias, com o cadáver no colo e ficou olhando para o alto, dizendo coisas desconexas, monologando com Deus, enquanto uma pequena multidão começava a se aglomerar em torno da dramática cena.
           Mediante à triste reportagem, houve um silêncio coletivo na padaria. Quando alguém abriu a boca, foi apenas para pronunciar a frase que ficou martelando na cabeça do Nepomuceno até o momento em que ele tomou a decisão de fazer o que fez.
            – Às vezes, a pessoa precisa morrer para saber que é amada!
           E foi a consternação provocada pela forte cena exposta no telejornal e o apelo emocional desta frase quase sussurrada, que desencadearam nele aquela ebulição interior. Numa fração de segundos, Nepomuceno reviveu toda a trajetória do seu desastroso fim de semana. Pensou em Natália e na infeliz atitude tomada no domingo de manhã. Por qual motivo? Lembrava-se lá por qual motivo? Com certeza, uma quirela; uma frase mal interpretada; um incidente pueril... Enfim, nada que justificasse um domingo inteirinho de contrariedades.
         E a culpa, de quem fora? Que importava? Havia passado o dia todo no boteco, bebendo com os colegas, discutindo futebol, jogando bilhar. Logo ele, que nem gostava de beber, nem de jogar bilhar e menos ainda de discutir futebol. Fez por pirraça! Para deixar a esposa sozinha o domingo inteiro. Comera torresmo com farofa no bar, desprezando o almoço delicioso que ela sempre lhe preparava com o maior carinho. Regressara ao lar à noite. Natália, deitada, fingira dormir quando ele entrou no quarto para se trocar.
        Nepomuceno passara a noite no sofá da sala, com a televisão ligada. De madrugada, acordara ouvindo uns soluços. A esposa estava chorando baixinho, um pranto triste e desconsolado. Aí foi ele que fingiu estar dormindo.
            Saíra de casa às 5 horas e 30 minutos em ponto, sem dirigir-lhe a palavra. Mas sabia que a esposa havia se levantado ao ouvi-lo sair. Sabia que ela havia se posicionado atrás da janela da sala e que o observara atravessar a rua. Sabia que ela pedira a Deus que o protegesse e o trouxesse para casa, à noite. Era o que ela sempre fazia, mesmo que estivessem brigados.
A cena da mulher morta nos braços do marido em desespero fê-lo sentir-se um palerma. Chegou a invejar o rapaz da reportagem. Não por protagonizar uma cena tão trágica, é lógico, mas pela flagrante e sincera demonstração de amor que fizera diante de uma minúscula câmera filmadora que a projetou universo afora. O oportuno filmador não conseguira enquadrar o rosto da mulher, mas a sua silhueta miúda, a sua negra e encaracolada cabeleira, o seu jeito frágil e esguio, tudo isso lembrava a estrutura física de Natália e teve um peso enorme na decisão de Nepomuceno.
            – E se fosse a Natália, ali, morta? - perguntou-lhe uma voz interior.
            E a resposta que obteve de si mesmo foi um nó imenso que se desenvolveu em sua garganta e o impossibilitou de continuar pensando. Foi então que, num gesto automático, socou o balcão da padaria e disse aquela frase. Não porque ela lhe fizesse algum sentido, mas porque foi a única coisa que conseguiu balbuciar:
            – Ao diabo com tudo isto!
         Talvez o “tudo isto” significasse a segunda-feira garoenta e fria; o edifício em construção na Bela Vista; a contrariedade da chefia por causa da falta injustificada... Talvez!
         E foi aí que, para espanto de toda a gente que tomava café na padaria, ele saiu em debandada, descendo a Brigadeiro Luiz Antônio, passando pela Sé e estando agora a caminho de casa, no contrafluxo do trânsito caótico da Radial Leste, após ouvir a mágica frase que o impulsionou: “Às vezes, a pessoa precisa morrer para saber que é amada!”.
            Não era bem assim. Ele amava a esposa e ela não precisaria morrer para sabê-lo. É certo que nunca o confessara assim, abertamente, mas em seu íntimo não havia a menor sombra de dúvida. Ele a amava e amava também o filho que há cinco meses encontrava-se enovelado no útero dela. Amava-os e a ideia de confessar tal sentimento à esposa somente depois de morta provocou-lhe um arrepio na espinha.
            Por isso, aquela urgência toda. Nepomuceno temia não chegar em casa a tempo. Parecia apostar corrida com a morte, mesmo sabendo que não deveria haver morte alguma rondando a esposa ou o filhinho. Mas sabia, também, que certamente era esse o pensamento do casal do noticiário, no momento em que saía do cinema.
         De qualquer modo, a pessoa que havia sussurrado tal frase cometera um equívoco, porque ele mesmo, Nepomuceno, estando vivinho da silva, sabia que era amado. Natália não só o dissera muitas vezes, como escrevera em curtos poemas dedicados a ele. Alma sensível e delicada, vivia a fazer versos que ele fingia ler e gostar, mas que não lhe diziam muita coisa. Mas a frase “eu te amo!” Ah!, esta ele lia, e entendia, e gostava de verdade.
            Às 8 horas e 47 minutos, Nepomuceno desembarcou no ponto de ônibus que ficava próximo de sua casa. Passou na floricultura, comprou um buquê com uma dúzia de rosas. Depois foi à confeitaria e adquiriu sonhos com recheio de chocolate – a guloseima preferida de Natália.
E foi assim que invadiu a casa naquela fria e garoenta manhã de segunda-feira. Com a alma repleta de angústia, e encheu de luz, perfume e sabor o quarto em penumbras, onde o amor ou a morte o esperava de braços abertos.

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