terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O escultor e o cristo




Naquela manhã, a vida seguia monótona em Araçá. Mas quando a carroça atravessou a cidade transportando o enorme tronco de madeira, as pessoas saíram às janelas e às portas para saberem do que se tratava. Até nós, meninos, interrompemos o futebol e ficamos observando. Vimos a carroça estancar, sob o comando de Germano. Seus condutores rolaram o tronco descomunal até o centro da praça da igreja, colocaram-no em pé e o cobriram com uma grossa lona parda.
Entendemos ser apenas um devaneio do excêntrico escultor que há anos aportara no município. Mas, quando voltamos a cuidar do jogo e os adultos de seus afazeres, percebemos não haver outro assunto mais interessante que aquele, para se comentar.
Germano era um homem de cara azeda, completamente avesso a falações. Dormia num banco da praça. Inicialmente nos deixou escabreados, depois percebemos ser somente um andarilho inofensivo e ficamos em paz. Durante o dia, metia-se nas matas em busca de pedaços de madeira. À noite, enquanto a cidade dormia, escalavrava os tocos, dava-lhes formas e expressões. De manhã, enfiava num saco de aniagem os formões, o martelete e a pedra de afiar, acomodava-os sob o banco e dirigia-se para o Empório São Judas Tadeu, levando pequenas esculturas para serem trocadas por alimento e bebida.
Chico Arruda, comerciante de pouquíssimos escrúpulos, fingia desinteresse. Olhava com desdém para as peças sobre o balcão e oferecia muito pouco por elas. Fiel ao seu habitual mutismo, Germano nunca contestava a transação. Voltava para a praça abraçado a enlatados de validade vencida e a vinhos envinagrados, e se dava por satisfeito.
Após a aparição do tronco, o escultor deixou de percorrer as matas e de procurar Chico Arruda. A partir daquele dia, não mais arredou pé da praça. Durante todo o tempo vigiava a peça protegida pela lona. Apenas nas altas horas da noite, quando a cidade se aquietava, retirava a cobertura e esculpia a madeira.
Certa manhã, percebemos que Germano havia se descuidado da vigília e espalhamos a notícia. A praça ficou entupida de curiosos. Chico Arruda chegou ofegante. Já se sentindo dono da peça, arrancou a capa protetora com um safanão e desnudou a escultura.
A comoção foi tão grande ante a exposição da obra que, naquele exato momento, principiou-se uma ladainha em louvor a Nossa Senhora das Dores que nunca mais cessou, pois, à reza dos araçaenses, uniu-se a oração dos infindáveis romeiros que passaram a chegar em comboios ao lugarejo ermo, até então abandonado à solidão da Serra da Mata mineira.
Tratava-se da mais perfeita imagem, em tamanho natural, da mãe do Cristo, ostentando nos braços o corpo imolado do filho. Tamanha era a verdade emanada dos olhos zelosos de Nossa Senhora, que passaram a atribuir a ela meia dúzia de graças alcançadas ali mesmo, naquela inesquecível manhã.
Com a fama da escultura a propagar-se vertiginosamente, criou-se um rebuliço tão intenso em Araçá, que o vigário mandou ampliar o templo, construir um salão para os romeiros, com lavabos e alojamentos. Solicitou também ao bispo que fossem remetidos padres adjuntos para atender à demanda. Os devotos paroquianos destituíram São Judas Tadeu da condição de padroeiro do município e colocaram-se sob a tutela espiritual de Nossa Senhora das Dores. O prefeito providenciou o alargamento e o capeamento das ruas estreitas e descalças. O delegado tratou de aumentar o contingente policial com o intuito de equilibrar o repentino caos instaurado na cidadezinha. Os ilustres vereadores, prevendo considerável aumento de tributos municipais, concederam-se generosos acréscimos salariais.
O comércio intumesceu descontroladamente devido à invasão dos camelôs, com suas barraquinhas multicolores e seus gritos dissonantes, disputando a atenção e os cobres dos transeuntes sedentos de graça; oferecendo-lhes, a preços exíguos, todas as quinquilharias necessárias à purificação dos pecados, fossem eles mortais ou veniais. Sem o menor constrangimento, empurravam sobre a gente desprovida de malícias, incensos nauseabundos, bugigangas sacras, réplicas miniaturadas da imagem da santa milagreira, velas, castiçais e uma infinidade de objetos comprovadamente eficazes para a remoção - sem  o menor sacrifício íntimo - das nódoas daquelas almas endividadas.
A praça tornou-se inabitável. Germano não viu outro jeito a não ser mudar-se para a capela mortuária do cemitério, em busca de sossego. Para lá levou as velhas ferramentas e tentou dar continuidade à sua arte. Mas, apesar de ser ali o único lugar isento do turbilhão sísmico, do fanatismo religioso e do comércio oportunista, não encontrou paz que lhe restabelecesse a inspiração. Era como se a confecção da santa tivesse sugado todo o seu manancial inventivo. Ficou nulo. Vazio. Impotente.
A sobriedade do retiro, somada à indolência constante e à fome, fez Germano mergulhar numa profunda depressão. Adoeceu no corpo e na alma. Chorava, vendo os formões enferrujarem-se e o martelete jogado num canto da capela.
O dono do antigo empório, transformado agora no imponente Supermercado Nossa Senhora das Dores, tendo vendido com sobra de lucros as peças trocadas por vinho azedo e comida estragada, procurou Germano a fim de lhe propor promissora sociedade. Como encontrou o artista decadente e incapacitado para a produção, desistiu da investida. Achou melhor negociar as miniaturas pré-fabricadas da padroeira.
À noite, quando a cidade sossegava e os vendedores recolhiam suas barracas, Germano esgueirava-se até a praça e ficava sentado num banco defronte à santa, mirando-a, rogando em muda oração que ela lhe devolvesse a inspiração perdida. Mas a mãe do Cristo, impassível à súplica do artista, mantinha os olhos piedosos voltados apenas para o filho morto em seus braços.
Numa madrugada, acometido de intensa febre, o escultor dirigiu-se, sob incessante tempestade, à praça da igreja, levando as ferramentas. Protegido pelo rumor do temporal, reentalhou a madeira.
Quando os primeiros raios de um sol frouxo refletiam luzes nos espelho das poças, os camelôs que chegavam para o trabalho precisaram esfregar os olhos sonolentos para se certificarem de que a cena à sua frente não era apenas a miragem de um sonho impensável.
Germano havia arrebatado dos braços de Nossa Senhora das Dores o corpo do filho ferido e deitara-se no lugar dele; braços pendidos, carcaça inerte. Em sua face, finalmente, a mesma serenidade estampada no semblante do Cristo deposto.

2 comentários:

  1. Lindo ensinamentos nestas palavras amigo!! Gostei muito e muitas vezes passamos despercebidos diante dos nossos irmão e deixamos de enxergar neles a presença do Cristo!! Obrigado pela mensagem!! ;)
    Carlos - Pescadores do Amor

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  2. Maravilhoso e emocionante... parabéns amigo, Amei!

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