Reminiscências
Inicio estes
registros sem saber ao certo se os conseguirei terminar. Minhas mãos estão
endurecidas pela doença que vai aos poucos me consumindo. As palavras formam um
desenho tremido, desalinhado, e os meus pensamentos, antes claros e convictos,
são hoje apagados e confusos. Escrevo com a
inevitável perplexidade de quem se olha demoradamente no espelho molhado, onde
a imagem, distorcida pelo efeito da água, mostra mais rugas no rosto e mais
opacidade nos olhos do que a aparência real.
É certo que
envelheci mais do que devia. As amarguras da vida – tanto as que busquei,
quanto as que se projetaram sobre mim – tornaram-me precocemente velho; ou
pior: amargamente velho.
Resta-me hoje
a solidão irremediável dos insociáveis. Um catre macio num quarto asseado de
paredes brancas e um criado-mudo de ébano, em cuja gaveta estão trancados os
medicamentos de nomes complicados que me mantêm vivo e sobre o qual a foto
desbotada da família que um dia tive, sorri entre o quadrado da moldura. Lembranças
remotas que o tempo insiste em dilapidar, tanto na antiga fotografia, quanto no
recôndito submundo de minha mente senil.
Nasci num
vilarejo perdido no interior deste imenso país. De meu pai, guardo uma
recordação anuviada, calada e ausente. Nunca fizemos o menor esforço para nos
entendermos. Alimentamos, reciprocamente, uma incompatibilidade que nos levou a
agir como se o outro fosse invisível, inodoro e insípido. De minha mãe
não guardo nada, pois quis Deus que ela partisse para outras esferas antes
mesmo que eu houvesse desmamado. Irmãos, não
tive.
Durante a
minha infância, uma infinidade de mulheres frequentava o meu quarto durante o
dia e o de meu pai, à noite. Lavavam-me, alimentavam-me e me ninavam, às vezes.
Algumas cheiravam bem e me tratavam com tolerância. Outras, impregnavam o
cômodo com odores nauseabundos de aguardente e tabaco, eram impacientes e
perversas.
Todas elas,
assim como o meu pai, nunca passaram de sombras apagadas e disformes em minha
memória, como essas gravuras em marca d’água, que ilustram o fundo da página
escrita, sem interferir no primeiro plano. Não cultivei
por eles qualquer tipo de sentimento. Jamais aflorou em mim um ínfimo
pensamento de gratidão ou de revolta. Naquele tempo, eu não ruminava atritos.
Eu tinha 23
anos quando meu pai morreu. O corpo precocemente corroído pelos excessos. Senti
prazer e alívio, negar para quê? Enterrei-o
numa cova rasa e me casei, um mês depois, com a filha de um religioso. Assumi a
condição de pequeno agropecuário. Não possuía riquezas, mas o leite gerado pelo
pequeno rebanho e a produção agrícola do sítio permitiam-me sustentar, de forma
digna e decente, a patroa e os nove filhos que concebemos. Tornei-me um
homem honesto, trabalhador e honrado.
Mas, quando eu
começava a sentir a mão do tempo pesando sobre os ombros, fui procurado pelos
três filhos mais velhos. Disseram-me que iam para a cidade grande, atrás de
melhores recursos. Achavam que a vida na roça, além de dura e ingrata, era
previsivelmente pobre. Entrei em
desespero. Sem a ajuda deles, não poderia cultivar as terras e ordenhar o gado.
Contratar camaradas era inviável com o pouco que ali era produzido. As crianças
menores eram só despesa. A insônia
rondou minha cama durante semanas, enquanto a empolgação dos rapazes crescia a
olhos vistos.
Estava eu
lamentando com o gerente da fábrica de laticínios, onde fora buscar o cheque do
fornecimento de leite, quando soube da novidade: o governo federal estava
oferecendo empréstimo num programa de incentivo à produção rural. Dinheiro
limpo, em boa quantia, com juros irrisórios e carência de um ano para o
vencimento da primeira fatura.
Voltei para
casa flutuando em nuvens. Chamei meus filhos e assegurei-lhes que não
precisariam mais ir embora. Daquele dia em diante, as coisas iriam mudar
completamente.
Vencidos os
trâmites burocráticos, o empréstimo foi aprovado de forma relativamente fácil.
Deveria tê-lo acompanhado um funcionário do governo para orientar na aplicação
do capital, mas este nunca deu as caras. A conta
bancária, antes tão magra, engordou de tal forma, que o gerente do banco – que
mal me conhecia – chamou-me ao escritório, ofereceu-me cafezinho e água gelada.
Depois me aconselhou a fazer aplicações financeiras, segundo ele, seguras e
rentáveis.
Inicialmente,
fiquei atabalhoado. Não sabia o que fazer: Comprar mais terras? Onde? Mais
reses? Mudar-me? Confabulava com minha esposa nas madrugadas insones em que a
lua invadia todas as frestas da cumeeira e explodia em fachos lancinantes sobre
os móveis e as paredes do quarto. Mas Teodora
pouco ajudava, pois, assim como eu, nada entendia de investimentos e, como
andasse às voltas com a gravidez do nosso décimo filho, uma sonolência
incontrolável não a permitia ouvir as minhas ladainhas por mais que alguns
minutos. As respostas,
que principiavam com um desenxabido “hum-hum, hum-hum”, transformavam-se
num ressono tão inquietante, que quase me levava à loucura.
Um mês depois
de haver adquirido o empréstimo, o filho mais velho voltou a me procurar,
dizendo que ainda pensava em partir. Falou que precisava de um bom emprego para
comprar roupas novas, bons calçados e, quem sabe, uma moto... Eu não quis
ouvir mais nada. Levei-o à cidade, comprei-lhe roupas da moda, botas
envernizadas e dei-lhe de presente uma motocicleta.
Os outros
filhos, enciumados, exigiram a mesma coisa e eu não titubeei. Aliás,
empolguei-me tanto que, com o incentivo da prole, acabei trocando a velha
caminhonete por outra novinha em folha. Para as
filhas, comprei vestidos estampados, assinei revistas de fotonovelas e adquiri
aparelhos de tevê e toca-discos de última geração. Para os filhos pequenos,
brinquedos eletrônicos que eles nem sabiam direito como usar. Para Teodora, que
a tudo assistia pateticamente, mandei buscar, na capital, móveis e utensílios
domésticos que só existiam em meia dúzia de casas daquela cidade.
Como tudo
aquilo consumisse muita energia elétrica, comprei também e mandei instalar na
propriedade um possante gerador de eletricidade, substituindo as antigas
lamparinas a querosene por expansivas lâmpadas incandescentes, em torno das
quais as mariposas faziam festa.
Cedendo às
lamúrias do meu sogro, doei para a sua instituição religiosa um moderníssimo
sistema de alto-falantes que, instalado numa das torres da ermida edificada por
ele, obrigava todo o vilarejo a ouvir os seus intermináveis e incontestáveis
sermões vespertinos, embalados por nostálgicas músicas sacras.
O dinheiro foi
gasto com uma velocidade tão grande que, quando a primeira fatura chegou em
minhas mãos, não havia um único centavo na conta bancária. A produção do sítio
em nada aumentara. Pior, diminuíra muito, pois os meus filhos agora só queriam
saber de “dar rolé de motoca” e “azarar as gatinhas”, diziam,
numa linguagem nunca ensinada nem compreendida por mim.
Minhas filhas,
que antes madrugavam para a labuta, tornaram-se dorminhocas, passando a acordar
tarde, pois ficavam assistindo tevê até altas horas da noite. As roupas, os
móveis e os utensílios novos estavam deteriorados. As motocicletas dos jovens,
arruinadas pelas péssimas condições das estradas. A caminhonete nova, devido
aos impulsos do motor possante que eu não consegui amestrar, caíra comigo numa
ribanceira, ficando totalmente destruída. O acidente me deixou capenga da perna
direita e com um incômodo cocuruto no antebraço esquerdo. Acabei readquirindo o
carro antigo pelo dobro do preço que o havia vendido.
A única reação
que tive, quando recebi o boleto bancário, indicando o valor a ser pago e a
data do vencimento, mostrando, inclusive, os juros e as multas a serem acrescidas, em caso de
atraso, foi correr para a casinhola que ficava nos fundos do quintal e, em meio
a um surto incontrolável de ventosidades fétidas e estrondosas, deixar-me
esvair numa diarreia ácida que durou horas e escalavrou-me dolorosas assaduras
no assento. Depois disto,
perdi o sossego e, consequentemente, a saúde.
As
correspondências bancárias, lembrando-me o sério compromisso assumido,
encontravam atalhos e chegavam, às vezes, duas ou três na mesma semana. As faturas
foram vencendo uma após outra com uma premência irremediável. Os juros, as multas,
as correções monetárias e todos os demais diabos, somados à dívida principal
tornaram-se uma massa com fermento em demasia. Cresceram assustadoramente,
diante de minha impotente perplexidade.
Meus filhos
foram, um a um, mudando-se para a cidade grande. As reses foram
vendidas para abrandar a fúria do credor, mas de nada adiantou. Os moirões
apodreceram, as cercas que delimitavam a propriedade caíram e não havia quem as
consertasse. As pastagens foram invadidas pelas ervas daninhas, sem que
houvesse meio de impedi-las. As roças tornaram-se improdutivas por falta de
adubagem. Até o filho que nascera por último, como se antevisse e não quisesse
participar da miséria que rondava a família, morreu antes de completar um ano
de idade, numa tétrica noite de temporal.
No dia em que
o oficial de justiça foi tomar posse das minhas terras, em nome do credor,
atraquei-me com ele. Rolamos por uma ribanceira. Eu, grudado na goela dele.
Ele, grunhindo: “Umpifff... Umpifff...”, perdendo o chapéu, a pasta
preta, a compostura...
Desnecessário
dizer que fui preso. Na delegacia, sofri um enfarte. Internaram-me às pressas.
Passei três meses entre a vida e a morte, mas sobrevivi. Teodora, coitada, não
teve a mesma sorte.
Não tive mais
em que trabalhar. E, mesmo se tivesse, cadê saúde? Passei alguns anos vivendo
de favores, parasitando nas casas dos meus filhos, desagradando-os com os meus
conselhos, minhas implicâncias diante de certas atitudes vulgares, como as
caras multicoloridas de minhas filhas e as indecentes microssaias que insistiam
em usar. Concluíram que
eu estava caduco e me internaram neste abrigo geriátrico, num bairro distante e
frio. Há seis meses não recebo visita.
Há, próximo
deste asilo, um cão que, ao ladrar, lembra-me o Valente, única recordação de
minha infância que me chega por inteiro. Era ele um
cachorro de pelagem marrom, sem raça específica, desses que em ambientes
urbanos vivem mergulhados em latões de lixo, com as orelhas constantemente
erguidas e a cauda sempre em festa. Lá na roça, andava a desentocar tatus e a
morder, de forma burra e irresponsável, o dorso dos ouriços. Amiúde chegava
ganindo, com o focinho abarrotado de espinhos que precisavam ser arrancados com
a torquês. Passava dias
amuado, procurando água e sombra. A boca inchada, os olhos marejados... Mas
nunca aprendia a lição, pois no primeiro descuido, lá ia o teimoso atrás dos
espinhudos.
Sempre que
ouço os latidos deste cachorro e penso no Valente, não consigo deixar de
comparar certas atitudes humanas às inconsequentes teimosias dele. A vida
girando em círculos e nós repetindo os mesmos erros, ininterruptamente. Não amei o meu
pai. Meus filhos não me amam e, certamente, os filhos deles não os amarão.
Seguiremos assim, mordendo em ouriços, espetando-nos em dolorosos espinhos,
recolhendo-nos amuados e voltando a repetir os erros, até que nos tornemos
verdadeiramente racionais.
E assim é a lei, uma corrente de escolhas e consequências, nos embalando no circulo das vidas com aqueles que convivemos. O importante é a lição.
ResponderExcluirAdorei... Abraços
Nossa.. belo conto!! É a vida é uma grande escola! :)
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